Foi como se aquele estranho, ao embaralhar as
cartas, tivesse previsto tudo. Não que fosse exatamente um estranho, mas ela só
o conhecia de conversas de telefone. Talvez embaralhar não seja a palavra
certa. Tudo que ele fez foi tropeçar e deixar cair a caixa com as cartas no
chão, tirando elas da ordem original, que era a partir da data de envio.
- Talvez seja melhor assim.
- Voce tem certeza? Podemos arrumá-las num
instante.
- Deixe assim Edu, o que vai importar são as opiniões mesmo.
Os dois se sentaram na poltrona da sala e
começaram a ler as cartas. Fãs de toda a Bahia enviaram cartas. O “Imperador
dos fast foods”
As cartas eram de apoio, de critica, de
sugestão. Edu, seu editor, disse que ler as cartas dos fãs era algo edificante,
mas para Erica estava sendo algo negativo. Descobriu que sua obra causava
sentimentos que não queria que as pessoas sentissem.
“Adorei o livro! Também apanhei muito da minha
irmã quando era pequena, e amei o final que a Suzana teve. Ela mereceu!”
“Acho que a Monica deveria ter sido mais
vingativa. Ela foi torturada pela irmã. Deveria ter matado ela!”
“Clara, seu dom é incrível. Você consegui
transmitir a miséria humana de forma sublime. Eu sempre achei que essa historia
de inveja de irmã era coisa de novela, mas depois de ler o seu livro, vi que
esse tipo de coisa acontece, e as vezes de forma sutil, enganadora. Vou começar
a cuidar dos podres que me cercam. Obrigado!
“Chorei dias a fio por causa do seu livro. Me
trouxe memorias que preferia esquecer.”
“Achei que criar um mascote para as redes
Imperador não foi muito original. Quando a Suzana pega o boneco na mão e o
observa na frente da irmã amarada, achei que ia acontecer alguma coisa feia.
Mas quando a Mônica se soltou e abraçou a irmã, daí que não gostei! Ela devia
ter pego uma faca e enfiado naquela vaca! Ainda bem que esse não foi o
final...”
Depois
de duas horas lendo as cartas, Clara estava destruída. Todo o seu esforço para
transmitir uma mensagem positiva da historia foi em vão. Edu não se importava.
Era seu primeiro trabalho como editor, e o livro estava vendendo muito bem.
Clara
se viu num beco sem saída. Continuar ou não a escrever? Edu nem desconfiava,
mas essa era uma possibilidade que Clara realmente estava cogitando. Ela havia
falhado.
Seu
livro era sobre suas memorias infantis. Tudo que ela passou foi tão profundo
que deixou marcas permanentes e sangrentas em sua personalidade. Toda a
historia foi retirada de um porão mental onde ela guardava as suas tristezas e sonhos mortos. Sua irmã
nunca leria o livro dela. Na realidade, sua irmã nunca leria nada, então ela
não teria problemas com ela. Mas na realidade se sua irmã lesse, talvez lhe
pedisse desculpas. Pensando bem, era isso que Clara mais queria. Seu livro era
para libertar ela mesma de seus receios, sua irmã de seus pecados e o publico
de suas incertezas.
Porém
tudo o que conseguiram apreender do livro foi a parte violenta, a sujeira, a
escuridão. A parte da morte.
Passados
algumas semanas, o noticiário começou a veicular crimes e assassinatos
cometidos entre familiares, principalmente entre irmãos. Ninguém precisava lhe
dizer que era efeito de seu livro.
Então
aos poucos, devagarinho, um quilo a cada dez dias, Clara foi definhando. Seus
sonhos foram trancados no porão da sua mente outra vez e sua vida foi se
apagando como chama ao fim da lenha.
Cometera
um erro.
Falhou.
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