22.8.13

Memórias de um homem que se tornou frio

Luiz contou até três.
Com um único puxão, retirou um pedaço de madeira de 15 centímetros que tinha atravessado seu antebraço esquerdo.
Havia sentido cansaço e resolvera entrar em uma das muitas milhares de casas abandonadas, existentes em toda parte. Ele e suas duas cachorrinhas estavam caminhando por pelo menos sete horas, e a noite já começava a espiar pelas frestas do firmamento.  Na porta da casa, restos mortais de duas pessoas serviam de buffet livre para moscas, ratos e outros animais. Luiz pensou em ir para outra casa, mas provavelmente a cena seria a mesma. Pulou os cadáveres e foi até um dos quartos, onde deitou-se em uma cama de casal. Estava tão cansado que nem chegou a conferir se a cama estava segura. O resultado de seu descuido foi um susto enorme causado pela quebra do móvel e um pedaço do estrado atravessado em seu braço. A madeira partiu-se como isopor.
Como se não fosse nada, Luiz estancou o sangue com uma bandagem improvisada e costurou o corte. Não carregava muitos remédios, apenas itens básicos para tratar ferimentos. A madeira não soltara farpas. Pra desinfetar, usou cachaça.
Dormiu um sono pesado e sem sonhos.
Nos primeiros raios de sol, Baleia, uma vira-lata de pelagem negra e porte medio, veio lhe acordar com uma lambida. Luiz levantou, coçou os olhos, fez alguns alongamentos básicos e partiu. Baleia o acompanhou, a cauda varrendo o ar atrás de si. Alice deveria estar em algum lugar no mato ali por perto. Logo viria atrás.
O Rifle automático em suas costas fazia um barulho metálico quando se chocava com o arco de madeira, pendurado no outro ombro. Equilibrar as duas peças, assim como a aljava e o colete de balas se tornou um costume para Luiz. Nem sentia o peso. O Capitão não gostou quando ele disse que iria sair do Quartel, mas já que ele insistia, que fosse bem armado. Luiz não queria levar nenhuma arma de fogo, mas o Capitão lhe obrigou, como uma ultima ordem. Nenhuma delas lhe pertencia de fato. Quando chegara ao Quartel da Resistência, Luiz era uma pessoa totalmente diferente do que é hoje. Antes ele chorava. Antes, ele se sentia sozinho. Antes, ele se sentia triste. Porém hoje, apenas uma obsessão louca por voltar para casa o dominava. Agora, só chorava de noite, quando punha a cabeça no travesseiro.
Balançando na perna esquerda, Luiz carregava uma katana. O sabre japonês havia sido comprado pela internet, anos antes da invasão, quando Luiz era um adolescente. Pagou R$ 900 reais na época. Não era muito resistente, mas tinha um bom fio e era bonita. A principio, era para ser apenas uma peça de decoração. Mas após a invasão, até que conseguiu alcançar o Quartel, a katana foi sua única amiga.
Luiz matava sem piedade. Geralmente, gostava de atirar em áreas não-letais apenas para incapacitar os inimigos. Quando o ataque era terrestre, atirava apenas o suficiente para aleijar os malditos, deixando-os vivos e agonizando. Quando a batalha terminava, retirava o peso excedente e, sozinho, descia da muralha do Quartel, carregando apenas sua katana da internet. Dilacerava os feridos, aplicando muitos golpes antes de mata-los efetivamente. Esse comportamento tornou-se uma rotina para ele, e um espetáculo para os outros soldados. Nas primeiras vezes, os soldados entoavam gritos e vivas a cada golpe dele. Com o tempo e com as mortes de seus amigos, passaram a manter silencio e observar passivamente a ação do rapaz, deixando apenas os gritos de dor dos esquartejados ecoarem pelos céus. O Capitão não gostava muito daquela atitude no começo, mas também ele se acostumou com a cerimônia do paranaense. Aquilo acalmava os homens, levantava o moral da tropa, lavava suas almas.
Luiz encontrou Baleia e Alice dois meses depois de sair do quartel. Elas estavam comendo um cadáver de um invasor no meio da rua. Havia muitos por ali, assim como de membros de alguma resistência da cidade. As cadelas o fizeram sorrir, coisa que ele fazia cada vez menos com o passar dos anos. Alice era uma poodle pequena, estava completamente suja. A sujeira não era tão evidente em Baleia por que seu pelo era curto e escuro. As cadelas se aproximaram dele e lamberam o sangue em suas mãos. Para não ficar mole, o rapaz matava os cães que porventura apareciam tentando cruzar com as cadelas em seu período de cio. Não era algo que gostava de fazer, mas matar era uma arte que precisava de prática. E carne de cachorro não era tão ruim; Alice e Baleia concordavam com ele sobre isso.
Por cerca de 10 meses ele vagou, tentando achar o caminho que o levaria até seu antigo lar. Às vezes, as imagens de Bianca apareciam-lhe em flashes. Correndo na praia. Sentada no sofá ao seu lado, jogando videogame. Andando de bicicleta. De lado, nua na cama, os pelos do braço arrepiados por causa do frio. De avental, na pia da cozinha, preparando o almoço. Seus olhos bem próximos, nariz encostado, sorriso pequeno, tímido. Quando essas imagens apareciam, Luiz sabia que invariavelmente choraria naquela noite.
Achou a vegetação de certa região familiar, e resolveu seguir até lá. Foi quando a entrada de sua cidade apresentou-se à sua frente. Um sem número de carros estava amontoado no local, sabe-se lá há quantos anos abandonados. Também havia corpos por ali, alguns nos veículos, outros nas ruas.
Ele caminhou vagarosamente até seu bairro, recordando-se de sua antiga vida. A cidade era um misto de poeira e vazio. O silencio era quebrado apenas pelo vento e eventuais aves. Nenhuma pessoa poderia ser vista em quilômetros.
Quando completaram cinco anos de casamento, Luiz e Bianca viajaram para a Tailândia. Na viagem de volta, Bianca sentiu dores e passou mal. Chegaram ao Brasil, e logo vieram a descobrir que ela estava com um tumor maligno, no estômago. Durante dois anos eles lutaram. Quimioterapia, Radioterapia, um transplante.
Ela estava em casa, recuperando-se da cirurgia e acostumando-se com o novo órgão quando as notícias da invasão começaram. O inimigo era implacável, e logo chegaria ali. Ela passou mal outra vez.
Luiz ligou para o hospital. Ficou sabendo que todos os médicos estavam sendo convocados para a zona de guerra, e que eles não poderiam fazer nada quanto à rejeição do órgão em Bianca.
Luiz desmaiou ao dar a notícia para ela.

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Naquela tarde, ele voltava para casa acompanhado de suas cadelas. Chegou ao portão do prédio e empurrou. Estava aberto. A porta do bloco não estava, mas bastou um chute para que ela se abrisse com facilidade. Uma lufada de ar atingiu o rosto do soldado viajante. Vagarosamente, ele galgou as escadas. Iria até o décimo andar. As cadelas aguardaram no térreo. Enquanto subia ele se lembrou do rosto dela. Seu sorriso, seu choro, sua tristeza, sua calma, seu prazer, sua duvida, todos os seus sentimentos estampados naquele rosto.
Abriu a porta devagar. Não havia movimento algum. Pode vê-la outra vez na pia, na sala, e até no banheiro. Uma vez, Luiz abriu a porta do banheiro enquanto ela o usava e a filmou. Ela ficou furiosa, e prometeu-lhe duas semanas sem sexo. Ficaram três dias.
Pela sala se espalhavam objetos de sua antiga vida. Um pote com conchas e uma estrela-do-mar que eles recolheram na praia. Um urso de pelúcia que ele havia cortado a cabeça fora com a espada, uma vez que esteve bêbado. Uma televisão de válvula, relíquia do século passado adaptada para o novo tipo de sinal. Um sofá velho, mas aconchegante. Na varanda, as plantas que foram deixadas para trás ainda estavam ali. O cacto ainda sobrevivia.
Luiz esteve doze anos fora, mas parecia que o tempo havia parado.
Seu maior medo, e o motivo de toda a sua jornada, estava logo a sua frente: seu antigo quarto. Ele temia encontrar um cadáver explodido pelas armas dos invasores, ou devorado por seus animais, ou até por animais da Terra. Seria ainda pior se não houvesse cadáver nenhum.

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- Vá Luiz, você tem que sobreviver – as lagrimas de Bianca eram de tristeza e dor.
- Não posso, não dá! Não me peça isso, por favor! Me deixa ficar, me deixa morrer do teu lado!
Ela olhava em seus olhos. Sua mão passeava pelo rosto do rapaz. Estava deitada na cama, ele ajoelhado ao seu lado. Ele chorava copiosamente, a coriza escorrendo-lhe do nariz. Ela limpou seu rosto com a manga da camisa. A estampa era de um gatinho brincando com uma borboleta. Com as duas mãos ela puxou Luiz para perto e o beijou, aquele beijo que é dado com a alma. O esforço que fez lhe causou uma dor parecida com uma facada.
- Vá, por favor. Eu já sofri demais. Não quero ver você morrer. Vá, pode levar meu sorriso.
Luiz demorou mais algum tempo até se levantar. As explosões começaram a ser ouvidas ao longe. As pessoas já estavam em pânico há dias. Ele se levantou, e do beiral da porta olhou para ela na cama. Sorria, e seu sorriso brilhava como mil sóis. Usando toda sua força, saiu apressado, as lagrimas escorrendo. Não sabe como, mas carregou a espada consigo. Uma vez na rua, correu desesperadamente, sem se importar com o que acontecia ao seu redor. A ultima imagem de Bianca machucava sua mente como um ferrão de abelha, que permanece ali, latejando, latejando, latejando...
Mas agora ele já não chorava. Era major da Resistência. Seu nome causava medo aos invasores, e sua cabeça valia prêmios.
Evocou a ultima imagem de Bianca e olhou para o quarto. A porta ainda estava entreaberta, como ele havia deixado anos atras. Pode vê-la por um instante, deitada ainda na cama, sorrindo com sua camiseta. Quando a ilusão passou, Luiz caiu de joelhos.
Sobre a cama, repousava um esqueleto intacto. Estava deitado, reto, com as mãos sobre o que uma vez fora seu ventre. Bianca não foi encontrada pelo invasores. Morreu ali na cama que eles compartilharam por anos e anos. Pensando bem, agora depois de tanto tempo, Luiz achou que ela tivesse partido no momento que lhe deu seu ultimo sorriso. O crânio ainda estava virado para a porta. Luiz se aproximou e acariciou os ossos de Bianca. Sorriu.

Chorou.

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