Menino
vagava por uma dimensão escura. Não sabia há quanto tempo estava ali e nem como
havia chegado. Seu corpo movimentava-se lentamente, como se nadasse em uma
gelatina onírica. Ao longe, alguém gritava.
Sentia-se
sufocado. Não podia ver nada à sua frente e respirava com dificuldade. Mesmo
com medo, foi em direção aos gritos para ver se chegava a algum lugar. À medida
que os sons tornavam-se mais altos, a visão se tornava menos turva.
Chegando
ao lugar de onde vinham os gritos, viu D’afolha encolhido em um dos cantos do
cômodo. Era uma sala de estar de uma casa comum, com alguns móveis e quadros
pendurados nas paredes. Era ele quem gritava. Estava com os olhos fechados e
com as mãos sobre as orelhas, tentando afastar o medo. Menino correu até ele.
Quando o viu, D’afolha gritou ainda mais alto, em pânico. Um odor nauseante
preenchia o lugar. Cheiro de carne podre e enxofre.
De
repente, menino percebeu que já estivera ali. Já havia vivenciado aquela cena centenas
de vezes. Sentiu um pavor imenso de olhar para trás, pois sabia o que iria
encontrar. E, talvez por saber, é que ele acabou virando-se.
Ladeando
a porta por onde entrara estavam os pais apodrecidos de D’afolha, gotejando
sangue coagulado. Nas mãos do pai, a espada de ossos e a cabeça de arco. Suas
órbitas estavam vazias, a boca esticada em um esgar de horror. Nas mãos da mãe,
as cabeças de Unha e Amigo, com as mesmas expressões.
Menino
sentiu a atmosfera pesar sobre seus ombros. Apavorado, começou a gritar “para
com isso para para para para para” e com as mãos nos olhos, encerrou-se em sua
própria escuridão. De repente veio o silêncio, como uma onda que bate na praia,
e ele arriscou abrir os olhos.
Menino
vagava por uma dimensão escura...
***
Arco
estava lutando contra o sono. Sua cabeça pendia para trás e para frente. Não
conseguia dormir direito na cadeira do hospital. Ela não descansava à noite e
ficava o dia inteiro sonolenta. Mas estava decidida: estaria presente quando
menino acordasse. Ele tinha que acordar.
Arco
lembrava-se pouco do que havia acontecido naquele dia. Quando acordou, ou
melhor, quando teve coragem de abrir os olhos, tudo havia acabado.
Não.
Menino havia acabado com tudo.
D’afolha
chorava ininterruptamente, encostado em uma das paredes de sua casa. Menino estava
caído de bruços, imóvel, sobre uma poça sangue. “Deus, que esse sangue não seja
dele”. Havia carne podre e ossos por todos os lados. Ela correu até Menino e,
em prantos, virou-o para si. Agora no hospital ela percebe o quanto foi
imprudente, mas ela precisava ter certeza de que ele estava bem. Mas ele não
estava.
Unha
havia chamado ambulâncias. Pediu logo três, explicando que a situação era
grave. Só quando os primeiros paramédicos chegaram, desconfiados, é que
mandaram as outras unidades. As crianças aguardaram a chegada dos outros
médicos. Um enfermeiro ficou lhes atendendo enquanto Menino era levado direto
para a UTI.
Desde
aquele dia, Menino ficou em coma. Seus órgãos estavam com vários pequenos
pontos de hemorragia, como se mil agulhas tivessem furado seu corpo. Os médicos
o submeteram a uma série de cirurgias. Nunca tinham visto nada como aquilo. Os
furos nos ossos teriam que cicatrizar sozinhos.
Arco
vinha revezando-se com os pais de menino para cuidar dele. Ela sentia que ele
acordaria quando ela estivesse lá, e por isso tentava ficar no hospital o maior
tempo possível.
Às
vezes Menino debatia-se durante a noite. Quando acontecia, Arco segurava sua
mão e acariciava seu rosto. Certa vez o ataque foi pior, e Arco não sabia o que
fazer. Num ato impulsivo, beijou Menino. Ele foi se acalmando, e desde então
seus ataques foram menos freqüentes. “Meu primeiro beijo foi em um garoto
desacordado. Nada virtuoso, hein senhorita?” pensou ela, olhando-se num
espelho.
Arco
estava confusa. Pensava cada vez menos em Unha, e passar as horas ao lado de
Menino acabaram se tornando agradáveis. Não totalmente, afinal ele estava em
coma. Mas ela sentia-se útil. Lia livros e cantava para ele, coisas que seus
pais não podiam fazer. Não sabia se ele a escutava, mas poder fazer isso era
uma forma de retribuir por ele ter se arriscado tanto.
Então,
num belo dia nublado, Menino acordou.
Abriu
os olhos vagarosamente, olhando pela janela. O sol escondia-se tímido atrás das
nuvens. Alguém cantava.
Quando
sua visão desembaçou, conseguiu identificar um típico quarto de hospital. A
lembrança da batalha o atingiu em cheio, e o medo e a angústia o consumiam em
ondas. Ficou trêmulo, nervoso, até que ele a viu...
Arco
estava sentada em uma poltrona, desenhando. Era ela quem cantava. Menino não
sabia se conseguiria falar, sentia-se fraco, mas quando ela parou, ele disse:
- Canta outra.
Ela
teve um sobressalto, surpresa. Seus olhos se encontraram. Ela correu até sua
cama e o abraçou. Mesmo sem forças, Menino conseguiu sustentar seus braços em
volta de Arco. Quando ela se afastou, seus olhos estavam vermelhos, e ela
enxugava lágrimas nas mangas da camisa. Suas folhas de papel espalhavam-se pelo
chão. Arco não precisava de lápis para desenhar.
-
Que música era essa?
-
Fullmoon, do Sonata Arctica. Conhece?
-
Não, mas é bonita. Canta de novo.
-
Com você acordado fico com vergonha, mas posso te mostrar a letra.
Arco
tirou os fones de seu celular e deu play na música. Enquanto Tony Kakko
cantava, Arco projetava as imagens na parede do hospital. Menino não entendia
inglês bem o suficiente para saber se Arco foi fiel a letra, mas isso não
importava. Em boa parte do “clipe” ele ficou olhando para Arco e lembrando-se
dela cantando. Ela era desafinada, mas ele preferia a voz dela mesmo assim.
Quando a música acabou, os dois ficaram se olhando por um bom tempo. Na parede
do hospital um lobisomem ensangüentado observava a lua cheia à beira-mar.
Menino
queria falar algo para arco, mas existem coisas que são tão difíceis de se
dizer aos quinze anos quantos aos dezoito ou vinte e um. Arco pegou em sua mão
e sorriu, timidamente. O coração dos dois palpitava.
-
Que bom que acordou. Demorou muito, cheguei a ficar com medo. Você me deixou
esperando, idiota.
Quando
os médicos entraram, os dois ainda davam risadas. Arco recolheu a mão
rapidamente. Os médicos fingiram não ter visto. Eram muito profissionais.
Menino
passou por uma bateria de exames e ficou mais dois dias em observação. Depois
foi liberado. Seus amigos fizeram uma festa no clube, com bastante coxinha e
refrigerante. Os amigos evitavam falar sobre o acontecido, mas o assunto veio à
tona. Arco ficou com lagrimas nos olhos por boa parte do tempo. Em geral ela
tentava ser durona, mas o acontecido a abalou demais. Lembrar-se daquilo sempre
a deixava mal. Unha e amigo louvaram as habilidades de Menino em batalha, o que
só serviu para deixá-lo ainda mais taciturno. Ninguém parecia saber o que havia
acontecido a D’afolha, e isso o preocupava também.
Depois
da festa, Menino levou Arco até em casa. Ela ficou mais calada desde que ele
lhe contou que seus pais o levariam para viajar. Ela nem lembrava que as férias
haviam chegado.
-
Mas você volta né?
-
Sim, vai ser só um mês – disse ele, como se estivesse dando uma má notícia. Ele
também não queria ir.
Quando
chegaram em frente à casa de Arco, ficaram quietos por alguns instantes, uma
espécie de tensão entre eles.
-
Obrigado por ficar no hospital. Sinto que, de alguma forma, você me ajudou a
voltar.
-
Não me agradeça. Foi você quem nos salvou. Não fosse você, nós estaríamos todos
no cemitério a essas horas.
-
Unha já salvou sua vida também – Menino não queria que essa frase tivesse saído
tão carregada.
Arco
tremeu. Baixou os olhos, como se de repente suas sandálias tivessem se tornado
interessantes. Menino achou que aquilo fosse um sinal. “Falei besteira”,
pensou. Mas então Arco levantou o rosto, sorrindo:
-
Acho que pra ele foi mais fácil. Ele não precisou brigar com um amigo.
Então ela lhe abraçou
de um jeito diferente. Seus braços envolveram o pescoço de Menino, e seus
rostos ficaram levemente encostados. Ela cheirava bem. Era o próprio cheiro de
sua pele, não de nenhum perfume, um aroma indescritível. Menino pensou que
alguém estava puxando seu estomago com um anzol. Parecia que seus corações
estavam se tocando no peito, de tão forte que batiam. Já tinha abraçado outras
garotas, mas dessa vez, foi como se a sentisse. Perderam-se no espaço de alguns
segundos.
A
mãe de Arco a chamou lá de dentro. Arco disse tchau rapidamente e entrou
correndo em casa. Menino ficou parado por alguns instantes, atônito, mas logo
começou sua volta para casa. Ele caminhou vagarosamente, não querendo se
afastar da casa dela. Ela o espiou da janela de seu quarto, até que ele sumisse
de vista. E assim foram dormir, ambos chateados com o começo das férias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário