13.3.14

09 - O Menino que Espirrava Trovões! - Medos e esperas

Menino vagava por uma dimensão escura. Não sabia há quanto tempo estava ali e nem como havia chegado. Seu corpo movimentava-se lentamente, como se nadasse em uma gelatina onírica. Ao longe, alguém gritava.
Sentia-se sufocado. Não podia ver nada à sua frente e respirava com dificuldade. Mesmo com medo, foi em direção aos gritos para ver se chegava a algum lugar. À medida que os sons tornavam-se mais altos, a visão se tornava menos turva.
Chegando ao lugar de onde vinham os gritos, viu D’afolha encolhido em um dos cantos do cômodo. Era uma sala de estar de uma casa comum, com alguns móveis e quadros pendurados nas paredes. Era ele quem gritava. Estava com os olhos fechados e com as mãos sobre as orelhas, tentando afastar o medo. Menino correu até ele. Quando o viu, D’afolha gritou ainda mais alto, em pânico. Um odor nauseante preenchia o lugar. Cheiro de carne podre e enxofre.
De repente, menino percebeu que já estivera ali. Já havia vivenciado aquela cena centenas de vezes. Sentiu um pavor imenso de olhar para trás, pois sabia o que iria encontrar. E, talvez por saber, é que ele acabou virando-se.
Ladeando a porta por onde entrara estavam os pais apodrecidos de D’afolha, gotejando sangue coagulado. Nas mãos do pai, a espada de ossos e a cabeça de arco. Suas órbitas estavam vazias, a boca esticada em um esgar de horror. Nas mãos da mãe, as cabeças de Unha e Amigo, com as mesmas expressões.
Menino sentiu a atmosfera pesar sobre seus ombros. Apavorado, começou a gritar “para com isso para para para para para” e com as mãos nos olhos, encerrou-se em sua própria escuridão. De repente veio o silêncio, como uma onda que bate na praia, e ele arriscou abrir os olhos.
Menino vagava por uma dimensão escura...

***

Arco estava lutando contra o sono. Sua cabeça pendia para trás e para frente. Não conseguia dormir direito na cadeira do hospital. Ela não descansava à noite e ficava o dia inteiro sonolenta. Mas estava decidida: estaria presente quando menino acordasse. Ele tinha que acordar.
Arco lembrava-se pouco do que havia acontecido naquele dia. Quando acordou, ou melhor, quando teve coragem de abrir os olhos, tudo havia acabado.
Não. Menino havia acabado com tudo.
D’afolha chorava ininterruptamente, encostado em uma das paredes de sua casa. Menino estava caído de bruços, imóvel, sobre uma poça sangue. “Deus, que esse sangue não seja dele”. Havia carne podre e ossos por todos os lados. Ela correu até Menino e, em prantos, virou-o para si. Agora no hospital ela percebe o quanto foi imprudente, mas ela precisava ter certeza de que ele estava bem. Mas ele não estava.
Unha havia chamado ambulâncias. Pediu logo três, explicando que a situação era grave. Só quando os primeiros paramédicos chegaram, desconfiados, é que mandaram as outras unidades. As crianças aguardaram a chegada dos outros médicos. Um enfermeiro ficou lhes atendendo enquanto Menino era levado direto para a UTI.
Desde aquele dia, Menino ficou em coma. Seus órgãos estavam com vários pequenos pontos de hemorragia, como se mil agulhas tivessem furado seu corpo. Os médicos o submeteram a uma série de cirurgias. Nunca tinham visto nada como aquilo. Os furos nos ossos teriam que cicatrizar sozinhos.
Arco vinha revezando-se com os pais de menino para cuidar dele. Ela sentia que ele acordaria quando ela estivesse lá, e por isso tentava ficar no hospital o maior tempo possível.
Às vezes Menino debatia-se durante a noite. Quando acontecia, Arco segurava sua mão e acariciava seu rosto. Certa vez o ataque foi pior, e Arco não sabia o que fazer. Num ato impulsivo, beijou Menino. Ele foi se acalmando, e desde então seus ataques foram menos freqüentes. “Meu primeiro beijo foi em um garoto desacordado. Nada virtuoso, hein senhorita?” pensou ela, olhando-se num espelho.
Arco estava confusa. Pensava cada vez menos em Unha, e passar as horas ao lado de Menino acabaram se tornando agradáveis. Não totalmente, afinal ele estava em coma. Mas ela sentia-se útil. Lia livros e cantava para ele, coisas que seus pais não podiam fazer. Não sabia se ele a escutava, mas poder fazer isso era uma forma de retribuir por ele ter se arriscado tanto.
Então, num belo dia nublado, Menino acordou.

Abriu os olhos vagarosamente, olhando pela janela. O sol escondia-se tímido atrás das nuvens. Alguém cantava.
Quando sua visão desembaçou, conseguiu identificar um típico quarto de hospital. A lembrança da batalha o atingiu em cheio, e o medo e a angústia o consumiam em ondas. Ficou trêmulo, nervoso, até que ele a viu...
Arco estava sentada em uma poltrona, desenhando. Era ela quem cantava. Menino não sabia se conseguiria falar, sentia-se fraco, mas quando ela parou, ele disse:
 - Canta outra.
Ela teve um sobressalto, surpresa. Seus olhos se encontraram. Ela correu até sua cama e o abraçou. Mesmo sem forças, Menino conseguiu sustentar seus braços em volta de Arco. Quando ela se afastou, seus olhos estavam vermelhos, e ela enxugava lágrimas nas mangas da camisa. Suas folhas de papel espalhavam-se pelo chão. Arco não precisava de lápis para desenhar.
- Que música era essa?
- Fullmoon, do Sonata Arctica. Conhece?
- Não, mas é bonita. Canta de novo.
- Com você acordado fico com vergonha, mas posso te mostrar a letra.
Arco tirou os fones de seu celular e deu play na música. Enquanto Tony Kakko cantava, Arco projetava as imagens na parede do hospital. Menino não entendia inglês bem o suficiente para saber se Arco foi fiel a letra, mas isso não importava. Em boa parte do “clipe” ele ficou olhando para Arco e lembrando-se dela cantando. Ela era desafinada, mas ele preferia a voz dela mesmo assim. Quando a música acabou, os dois ficaram se olhando por um bom tempo. Na parede do hospital um lobisomem ensangüentado observava a lua cheia à beira-mar.
Menino queria falar algo para arco, mas existem coisas que são tão difíceis de se dizer aos quinze anos quantos aos dezoito ou vinte e um. Arco pegou em sua mão e sorriu, timidamente. O coração dos dois palpitava.
- Que bom que acordou. Demorou muito, cheguei a ficar com medo. Você me deixou esperando, idiota.
Quando os médicos entraram, os dois ainda davam risadas. Arco recolheu a mão rapidamente. Os médicos fingiram não ter visto. Eram muito profissionais.
Menino passou por uma bateria de exames e ficou mais dois dias em observação. Depois foi liberado. Seus amigos fizeram uma festa no clube, com bastante coxinha e refrigerante. Os amigos evitavam falar sobre o acontecido, mas o assunto veio à tona. Arco ficou com lagrimas nos olhos por boa parte do tempo. Em geral ela tentava ser durona, mas o acontecido a abalou demais. Lembrar-se daquilo sempre a deixava mal. Unha e amigo louvaram as habilidades de Menino em batalha, o que só serviu para deixá-lo ainda mais taciturno. Ninguém parecia saber o que havia acontecido a D’afolha, e isso o preocupava também.
Depois da festa, Menino levou Arco até em casa. Ela ficou mais calada desde que ele lhe contou que seus pais o levariam para viajar. Ela nem lembrava que as férias haviam chegado.
- Mas você volta né?
- Sim, vai ser só um mês – disse ele, como se estivesse dando uma má notícia. Ele também não queria ir.
Quando chegaram em frente à casa de Arco, ficaram quietos por alguns instantes, uma espécie de tensão entre eles.
- Obrigado por ficar no hospital. Sinto que, de alguma forma, você me ajudou a voltar.
- Não me agradeça. Foi você quem nos salvou. Não fosse você, nós estaríamos todos no cemitério a essas horas.
- Unha já salvou sua vida também – Menino não queria que essa frase tivesse saído tão carregada.
Arco tremeu. Baixou os olhos, como se de repente suas sandálias tivessem se tornado interessantes. Menino achou que aquilo fosse um sinal. “Falei besteira”, pensou. Mas então Arco levantou o rosto, sorrindo:
- Acho que pra ele foi mais fácil. Ele não precisou brigar com um amigo.
Então ela lhe abraçou de um jeito diferente. Seus braços envolveram o pescoço de Menino, e seus rostos ficaram levemente encostados. Ela cheirava bem. Era o próprio cheiro de sua pele, não de nenhum perfume, um aroma indescritível. Menino pensou que alguém estava puxando seu estomago com um anzol. Parecia que seus corações estavam se tocando no peito, de tão forte que batiam. Já tinha abraçado outras garotas, mas dessa vez, foi como se a sentisse. Perderam-se no espaço de alguns segundos.
A mãe de Arco a chamou lá de dentro. Arco disse tchau rapidamente e entrou correndo em casa. Menino ficou parado por alguns instantes, atônito, mas logo começou sua volta para casa. Ele caminhou vagarosamente, não querendo se afastar da casa dela. Ela o espiou da janela de seu quarto, até que ele sumisse de vista. E assim foram dormir, ambos chateados com o começo das férias.

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