5.6.18

Ultima noite em Caligo


Gideon acordou dolorido no meio da noite. Depois da batalha no pântano, ele e Liliana voltaram para a estalagem pra pegar o resto das coisas, e resolveram dormir ali mais uma noite. Melhor dormir em camas duras do que em chão de barraca.
Ele caminhou até a janela e observou o céu noturno. Uma brisa entrava pela janela, trazendo um cheiro úmido do pântano misturado com aromas de cidade pequena. Ele já esteve em lugares piores, sem nem mesmo ter um teto sob sua cabeça, correndo o risco de ser devorado, esmagado ou derretido durante o sono. A estalagem parecia um paraíso.
A lua entrava pela janela sem pedir licença. O céu não era nem de perto tão estrelado quanto em Akros, mas era bonito o suficiente. Na realidade, pensou ele, qualquer céu depois de uma batalha vencida é lindo. Seu ombro ainda doía, mas o trabalho que Liliana fez havia transformado a dor insuportável em um incômodo constante. Passaria. Do lado de sua cama a espada velha repousava na bainha, dormindo seu próprio sono. Ele a havia limpado e afiado, deixando ela como deveria estar. O fato de ela ter pertencido a um homem morto não era um problema. Ele já havia empunhado a arma de um deus, e o resultado não fora melhor.

Perto dali, Liliana dormia em outra cama. Ela ressonava tranquila, um sono quase infantil. Era um borrão negro avolumado em um canto do cômodo, sendo apenas divisável por conta da luz noturna. A longa cabeleira negra se espalhava pela cama e tocava o chão empoeirado. Ela odiaria, se visse. Desde que ele se lembrava ela nunca dormira calmamente, mesmo em Amonkhet, quando esteve sozinha em um quarto; Ela se debatia e murmurava durante a noite.
Ele pensou nela. Ela acabara de matar o irmão, que achava já estar morto. Tudo bem, ele estava morto, e além disso era um lorde zumbi senhor de uma tropa de mortos-vivos. Mas isso não diminuía o fato de que ela o havia matado. E na cabeça dela, era a segunda vez. Ela ainda parecia assombrada quando estava acordada, e Gideon pensava que ela havia ficado em alguma espécie de choque. Mas durante o sono, pelo menos ela descansou normalmente.
Ele analisou sua própria decisão de ficar em Dominária enquanto descia para o bar da estalagem, agora fechado e vazio. Sentia falta de Chandra. Ela era literalmente uma luz no grupo deles, e ele esperava que ela não tivesse partido de vez. Jace deixara um aperto em seu peito que ele não esperava sentir. Ele completava seus planos e métodos perfeitamente, e de um simples companheiro de batalha em Zendikar, se tornou um amigo verdadeiro. Pelo menos até algumas noites atrás, quando ele desapareceu pelas eternidades cegas enquanto gritava, tentando manter sua mente coesa o suficiente pra não explodir. Esperava que ele tivesse sobrevivido. E Nissa..
Ele encheu uma caneca com água e se sentou no balcão. Um dos filhos do estalajadeiro espiou pelo vão da escada, viu que era ele, acenou e voltou. O lado soldado dele o fez franzir o cenho. “Isso não é hora de uma criança estar acordada”. Faltavam algumas horas para o nascer do sol, mas Gideon sabia que seria difícil dormir. Ele pensava nos motivos de Nissa. Ela viu seu mundo estar pendurado por apenas dois dedos à beira de um precipício, e mesmo assim aceitou partir com eles. Ele sabia que Zendikar ainda estava longe de estar curado, mas ele também sabia que o propósito deles em Dominária não era em vão. As vezes se pegava pensando se não era muito ingênuo, muito inocente em confiar na necromante, e se Nissa não estaria certa afinal. Mas mesmo que tenha trocado palavras com o Dragão, Liliana não fora embora. Ela veio para o ponto de encontro, guiando os outros. Ela batalhou em Caligo e matou o próprio irmão. Deuses, ela acatou planos de batalha de um anjo!
Ele não poderia estar errado sobre ela. Ele não queria estar. Dos vários grupos que participou, Gideon nunca esteve perto de alguém que utilizava magia negra. Mas aos poucos.. ele passou a perceber que zumbis podem ser apenas ferramentas. Armas, como a espada que estava ao lado de sua cabeceira, lá em cima. O jovem que ele foi em Valeron, treinando em Bant para se tornar cavaleiro, jamais aceitaria trabalhar com uma dama da morte. Mas esse jovem também não usaria a espada de um soldado caído. O tempo passou e ele percebeu que honra e dever tem mais nuances do que ele havia aprendido com Hixus. No fim, percebeu também que talvez tenha ficado em Dominária porque Liliana foi a única que apresentou um objetivo claro pra ele seguir. Ele era um soldado. Ele precisava de caminhos, ordem, organização. Matar Belzenlok e livrar Liliana de seus contratos era a coisa certa a se fazer, o caminho mais reto no meio desse emaranhado de possibilidades.
Quando voltou para o quarto, ela estava em silêncio. Possivelmente estava acordada, mas obviamente, ela não falaria nada. Ele acordou algumas horas depois com o sol aquecendo as brumas da manhã, com os sons dos saltos de Liliana ressoando pelo quarto e o tilintar agourento do véu em sua cintura. Seu rosto ainda estava inchado, mas ela já estava maquiada, mesmo sabendo que passariam muito tempo no lombo de cavalos, debaixo do que quer que o clima estivesse reservando pra eles. Ela fingiu indiferença e foi até a porta, exigir um desjejum, “afinal os salvadores de Caligo merecem um café no quarto, não é mesmo?”.
Encaminharam-se então até o acampamento dos soldados e de lá partiram para Nova Benália. Ela estava claramente incomodada com o odor dos animais e a dureza da sela, mas não deixava transparecer. Ele riu e ela o olhou, as sobrancelhas tão juntas quanto dois minotauros em combate.
Amigo de uma Necromante. Seus Irregulares teriam rolado no chão de tanto rir.

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Arte: Pântano - Mark Poole
Texto: Rafael Seiz

Um comentário:

  1. Conto maravilhoso. Espero mais no futuro, bem detalhado e texto não muito complexo para leitores de Magic. Muito bom Rafael.

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