Quando somos crianças, é normal fazermos amizade com pessoas
que, mais tarde, percebemos não ter nada a ver conosco, principalmente na escola. Na maioria das vezes essas pessoas nos
decepcionam profundamente. Foi o que aconteceu com Unha.
Unha era um garoto magro, mas não esquelético. Chegou de
outra cidade, e como qualquer criança “de fora”, foi tratado de forma
diferenciada: as meninas lhe davam mais atenção do que aos outros garotos; Já os
garotos, por sua vez, implicavam com ele mais do que com outros alunos . Unha
não se importava nem com elas e nem com eles. A vida o obrigou, à base de porradas e noites mal-dormidas ouvindo o choro de sua mãe, a se tornar um menino introspectivo.
Ganhou esse apelido por que suas unhas eram compridas e pontiagudas, como se fossem garras. As garotas amaram, acharam-no estiloso. Os garotos odiaram. "Está se achando", pensaram. Ele sempre cortava as unhas, mas não adiantava. Como se fosse magica, elas cresciam quase que instantaneamente após o corte. Suas unhas assustaram os
professores no começo, mas como ele não bagunçava e tirava boas notas, não foi
incomodado sobre o fato.
Três alunos chamaram a atenção de Unha logo no seu primeiro
dia de aula. Um rapaz quase tão quieto quanto ele, um outro muito falante e
agitado, e um terceiro garoto, mais velho, que emanava uma aura perigosa, viciada.
Como não estudava com nenhum deles, só os conhecia por apelidos. O rapaz quieto era chamado simplesmente de Menino, e diziam que espirrava trovões. No começo, Unha não entendeu o que isso queria dizer, mas depois
de ver o que acontecia quando ele espirrava, compreendeu porque ninguém sentava ao
seu lado. O rapaz agitado era chamado de amigo dos pássaros, ou só de "Amigo". Depois de algum tempo, Unha percebeu que Menino e
Amigo começaram a conversar, e que os dois eram xingados de Estranhos pelos
outros alunos. Unha queria estar com eles, pareciam ser legais e o entenderiam, mas eles eram de outra turma, e seria difícil se aproximar deles assim do nada. Unha tinha um pavor a qualquer possibilidade de rejeição. Ele chamava isso de "Teignorofobia". Por essa causa, evitava se aproximar dos outros.
Unha veio de cidade grande, onde
pessoas com estranheza eram comuns, mas ali naquela cidadezinha do interior, onde as noticias ainda chegavam em jornal impresso, a
população não estava tão acostumada a lidar com esse tipo de gente. Logicamente, depois que Menino apareceu, a cidade começou a prestar atenção nessas pessoas estranhas.
Certa vez, enquanto andava pelo pátio na hora do recreio, Unha
foi abordado pelo garoto ruim, como ele o chamava em sua mente. Ele estava acompanhado de vários outros
moleques da escola. Era conhecido como Repetente. Ele era mais velho, mais
alto, e seus “seguidores” eram todos valentões. Unha não se intimidou e tentou
passar por eles, mas Repetente o empurrou de volta. Para o espanto dos outros, Unha não caiu no chão. No momento em que se encararam, Unha percebeu que,
assim como ele e os outros dois garotos da sala, Repetente também tinha uma
estranheza. Não viu nada que denunciasse isso; foi apenas intuição. O garoto ruim sorriu, e a malicia e o veneno podiam ser vistos em seus olhos. O maior erro dos adultos é pensar que não existe maldade em pessoas abaixo dos doze anos de idade.
Irritado e envergonhado, Unha não conseguiu se segurar e avançou, conseguindo ferir Repetente com suas garras. Ele
ficou assustado com a reação rápida de Unha, pois ninguém nunca tinha
conseguido machucá-lo em uma briga. Enfurecido, foi para cima do rapaz. Os
dois começaram a brigar de um jeito estranho, estabanado. Afinal, crianças não
sabem encenar grandiosas cenas de artes marciais, resumindo tudo a uma grande confusão de braços e pernas. Unha não entendeu o porque,
mas percebeu que Repetente adivinhava onde ele tentaria bater. Por sua vez,
Repetente se admirou com os reflexos de Unha. Ele sabia onde Unha atacaria, mas
todas as suas defesas eram inesperadas, como se agisse por instinto. E era isso
mesmo: Unha também tinha uma estranheza. Ele era meio-lobo. Nada a ver com lobisomens ou transformações na lua
cheia, ele simplesmente era o que era, um garoto com instintos apurados e corpo
mais forte.
A pele de seu rosto se contraiu, deixando os dentes à mostra, em especial, os caninos. Seus olhos dourados afiaram-se como laminas, e sua dança de briga se tornou mais ágil, coordenada, na mesma medida em que sua ira crescia. Repetente nunca admitiria para ninguém em toda sua vida, mas sentiu o medo devorando-lhe a espinha diante daqueles olhos de fera. Ele iria agradecer naquela noite em sua oração, que fazia por obrigação da mãe, por Unha não ter feito aulas de caratê e ainda ser inexperiente em brigas.
A diretora e alguns professores fizeram menção de interromper a briga, mas ficaram receosos diante da situação que se desenrolava. Respiraram aliviados momentos depois. Repetente estendeu uma mão e permaneceu imóvel. Unha foi pego despreparado por aquele gesto, parando no lugar em que estava, sem saber como agir. Os dois estavam esbaforidos. Decidiram parar de brigar, menos por bom-senso do que por cansaço, e Repetente lhe perguntou se queria
entrar para o grupo. No fundo, pensou que se a birga continuasse, iria perder, e isso era inadmissível. Desesperado para ter amigos, Unha aceitou, embora mais tarde viesse a refletir do porque de ter aceitado. Dias depois, Repetente contou à Unha qual era sua estranheza: era seu olfato extremamente aguçado,
mais até do que o seu próprio. Repetente sabia de onde vinham seus golpes apenas
por sentir de que parte do corpo saía mais cheiro de suor quando as pessoas tencionavam
os músculos. Ele lhe contou que perguntou para o professor de ciências se quando a pele contrai, mais gotículas de suor são expelidas por aquele poros, como se apertássemos uma laranja. O professor disse que não tinha certeza, mas achava que sim, o que foi o suficiente para Repetente treinar com os moleques que espancava durante o recreio e nas saídas das aulas. Era uma estranheza terrível e magnífica ao mesmo tempo.
Com o tempo, Unha percebeu que a pintura da escola
vivia mudando, mais ou menos a cada duas semanas. Os professores não tinham chegado a um consenso sobre como isso acontecia. Um dia, o garoto-lobo viu que uma garota
estava encostada na parede, e que a pintura mudou quando suas mãos tocaram o
concreto. A garota percebeu que tinha sido vista e deu um gritinho de susto. Vermelha como um tomate,
saiu correndo e se escondeu no banheiro feminino. Dias depois, Unha descobriria que a garota se chamava Arco Íris
e que era amiga dos estranhos. Ao vê-la com eles, Unha se sentiu mais solitário
do que nunca. Os garotos com quem andava não eram exatamente o que ele esperava ter como amigos.
Unha sempre evitou participar das surras que os garotos
tentavam dar nos membros do Clube dos Estranhos, principalmente depois de descobrir sobre a amizade
de Arco com eles. Só aceitou participar da perseguição no bosque para se
certificar que ninguém machucaria a garota. Unha não sabia o porque, mas não
queria que ninguém fizesse mal a Arco. Repetente percebeu isso, e não gostou da ideia. Unha era seu melhor briguento, e o líder dos garotos custou a admitir que era mais fraco que o garoto-lobo. Não podia se dar ao luxo de perder seu general de campo por causa de uma gorda-baleia. Decidiu que testaria a lealdade de Unha.
Alguns dias depois, quando Unha estava chegando ao esconderijo dos
garotos, situado num velho galpão que um dia foi uma metalúrgica, a cena que viu o petrificou: os Estranhos estavam amarrados em pilastras e muito
machucados. Menino e Amigo sangravam pelo nariz e boca, e Arco, apesar de não
ter sido espancada, chorava muito e tinha os olhos vermelhos. Havia marcas em seus braços, provavelmente por causa de beliscões.
- Ora vejam quem chegou! Meu braço direito! – Disse Repetente,
com um tipo de tom de voz estranho, zombeteiro – Veja o que conseguimos Unha!
Poderemos nos divertir à vontade agora que capturamos esses panacas! Isso não é
ótimo? Veja, a gente encurralou eles na saída da aula, e eles não tiveram tempo de fugir pro bosque! Rá, chega aí, se quiser pode bater neles também.
- Solta eles, Repetente. Solta eles agora!. Isso é tortura, igual o professor de história falou na aula. Você está indo longe demais, seu fascista!
Unha estava calmo por fora, mas sentia seu sangue pulsar
cada vez mais forte. Seu cabelo começou a eriçar, e seus lábios tremiam. Os garotos se lembrariam dessa frase como a mais longa
dita por Unha em toda sua história no grupo. História essa que não
iria durar muito tempo. Repetente estava ficando cada vez mais irritado.
- Ui, fascista! Aprendeu palavrinha nova na aula e tá se achando o esperto. Ora, deixe de ser bundão! Agora que conseguimos pegar eles,
você quer que eu solte? Os adultos vivem dizendo que torturar inimigos
durante uma guerra é normal, então que mal há? É só pra descobrir informações, que nem a polícia faz. Ou será que você está com pena deles? Ou é por causa dela - disse Repetente, dando um puxão de cabelos em Arco - Ah sim, eu percebi o jeito que você olha pra ela...
Repetente estava avermelhado e Unha estava com seus dedos em
riste, mas não sabia o que fazer. Começou a procurar alguma saída para a
situação, mas não estava conseguindo achar nada. Seus instintos estavam dizendo para ele pular na garganta de Repetente, mas os outros garotos poderiam fazer algo grave com os estranhos. Eram um bando de covardes, mas poderiam fazer algo sem querer, e isso era perigoso. Unha resolveu enrolar. Os lobos sempre foram grandes estrategistas, afinal.
- Você está maluco, Repetente. O que você disse tá errado.
- Errado? Ora, errado?! - disse Repetente, aos gritos - Acha que eu não percebi que você
nunca participa de nossas brigas contra esses babacas? Aliás, de nenhuma briga né. Acha que eu não percebi o
jeito que você olha para a garota?! Você logo se tornaria um traidor, Unha, mas
eu vou cuidar disso antes que aconteça. Você vai pegar este sarrafo e vai
espancar ela, assim como fizemos com os outros dois, e vai provar que você não
é um traidor! Deixamos ela especialmente pra você! Ela é só uma gorda-baleia, saco-de-areia-! Fica usando roupinhas coloridinhas, que aposto que a mãe dela rouba das lojas! Vamos lá! mostre que não é um panaca, ou vamos te bater e te expulsar do grupo.
Repetente estava enfurecido. Jogou o Sarrafo aos pés de Unha
e esperou.
Ele não conseguiria bater nela. Não, nela não. Os garotos
eram seus únicos amigos, mas estavam colocando-o em um beco sem saída. Unha
pensou em se rebelar para ajudar os membros do clube, mas os Estranhos
nunca o aceitariam, e Arco nunca o acharia legal. Os Estranhos estavam
amarrados e amordaçados, os garotos eram quase vinte e ele estava sozinho. Sua
cabeça girava, seu coração explodia e ele ficava cada vez mais confuso. A raiva crescia em seu peito e ele percebia isso, com medo de si mesmo. Respirou fundo, pegou o
sarrafo do chão e começou a se aproximar dos três reféns. Suas pernas estavam tremendo, e ele estava quase urinando. Repetente estava sorrindo, assim como seus comparsas. Unha chegou perto de
Arco, que estava encharcada pelas lágrimas e segurou firme o sarrafo. Repetente segurou os cabelos da menina, puxando seu rosto pra cima, enquanto ela o forçava para baixo.
- Vai Unha! Bem na cara! Vai!
Arco soluçou, e com o canto do olho viu a mão de Unha fazendo força. Ela
ergueu o rosto, e seus olhos se encontraram. Os olhos de Unha eram amarelos,
ferozes, lupinos. Ela parou de chorar. Ele sentiu um arrepio.
No instante seguinte, o chão estava sujo de sangue.
FIM DA PARTE 01.
se nao acabar em breve, podia ter um personagem chamado Historia, com a estranheza de lembrar de tudo que já leu.
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