E então ele se
lembra do olhar de sua mãe. Um olhar de pena, ternura, e ao mesmo tempo, medo.
Ela conseguia caminhar de mãos dadas com seu pequeno filho, mas não conseguia
sustentar seu olhar. Ela não sabe o que fez de errado, não sabe por que isso
teve que acontecer em sua família, com seu filho. E eles continuam caminhando
de mãos dadas, o garoto de cabeça baixa, a mãe chorando silenciosamente. Para o
garoto, tudo estava em silêncio, mas ao redor dele e de sua triste mãe as
pessoas de sua pequena cidade natal faziam coro, gritando coisas como “Monstro!”, “Fora
aberração!”, e “Queimem-no na fogueira!”.
Eles andam até a
caminhonete do marceneiro da cidade, que ofereceu-se para levar a mudança da
mãe solteira e da criança amaldiçoada para outro lugar. O garoto ouviu quando o
homem barbudo e mal cheiroso disse à sua mãe: “Para mim será muito pior, pois
vou ser visto como uma espécie de louco que ajudou o garoto monstro, já para
você, só irá custar algumas gotas de suor”. E o garoto, que já tinha sido aterrorizado
e espancado pelas pessoas da cidade, não enlouqueceu de vez ao ouvir isso por
que na época era apenas uma criança e não entendeu o significado. E foi assim
que mãe e filho mudaram-se de cidade, tornando-se proscritos e passando a viver
nas vielas da rejeição, no meio da disfarçada e violenta agonia metropolitana.
Unha
ergueu o braço, segurando o sarrafo como se fosse uma extensão de seu corpo.
Ficou parado por vários instantes, como que desconectado do mundo. Foram
míseros quatro segundos, tempo suficiente para lembrar-se de tudo que tinha
passado até ali. Do rosto de sua mãe, de sua primeira mudança, da segunda
mudança, da terceira, da quarta, da quinta... Lembrou-se de quando voltou para
sua cidade natal e, na época com apenas 11 anos, matou com suas próprias mãos o
marceneiro que havia abusado de sua mãe, que desde aquele incidente tornara-se
uma mulher fria e depressiva, romântica e sexualmente morta. O padre a quem
Unha se confessava lhe disse que ter matado tal homem ainda não o tinha tornado
o monstro que acusavam-lhe de ser, pois agiu para defender a honra de sua mãe,
mas se voltasse a praticar atos como aquele, apenas estaria confirmando o que
as pessoas pensavam dele. Depois mandou-lhe que rezasse dez Pai-nosso e cinco
Creio em Deus pai.
Lembrando-se
do sangue quente e pegajoso do marceneiro em suas roupas naquele dia fatídico,
Unha voltou a si e percebeu novamente o pedaço de madeira suja e farpada que
dormia em suas mãos, tranquila, impotente quanto ao que fariam dela. Poderia
tornar-se um belo entalhe ou servir para machucar pessoas. Unha teria de
escolher entre a solidão e a miséria. Mas ele não iria se tornar o monstro da
história. Nasceu com caninos grandes, garras poderosas, instintos aguçados,
olhos dourados e isso não era sua culpa. Se machucasse alguém deliberadamente
por não querer passar vergonha na frente dos seus ‘parceiros’, aí então a culpa
seria única e exclusivamente sua. Lembrou-se dos seus poucos e bons amigos de
outros colégios e percebeu que os garotos não passavam de colegas
interesseiros. Foi então que a garota em sua frente ergueu os olhos, e eles
ficaram conectados durante alguns segundos que pareceram anos. E ele se
perguntou se em algum momento ele sequer cogitou a possibilidade de machucá-la,
e sentiu que mataria qualquer um que fizesse algum mal a ela a partir daquele
momento. Arrepiou-se quando se lembrou da frase preferida de seu melhor amigo,
que morava na ultima cidade em que estivera antes de se mudar: “Role o dado e
torça pelo vinte. Se não der, faça o melhor que puder com o resultado que
tirar”.
E ele
rolou o dado. Ignorou o fato de estar sozinho. Ignorou os pedaços de madeira e
as correntes nas mãos dos outros garotos. Ignorou que sair inteiro dessa seria
difícil e que Repetente não suavizaria o seu lado. Ele apenas agiu com algo que
tinha muito mais do que qualquer outro pré-adolescente presente naquele galpão:
instinto.
Sorriu para a menina ao mesmo tempo em que arremessava o pedaço de madeira no
rosto de Repetente, acertando no meio de seu nariz. Enquanto os outros
assimilavam o que estava acontecendo, Unha cortou as cordas dos dois meninos
com suas garras e com um salto estava no meio de quatro garotos, enfrentando-os
ferozmente. Murmurou para si mesmo que soltar a menina tornaria a situação mais
difícil, e torceu para que seus amigos não a libertassem. Unha não imaginou que
Amigo pudesse entende-lo, mas o rapaz ouviu seu murmúrio e não soltou Arco.
Repetente estava chocado, pois apesar de ter cogitado a hipótese de Unha
voltar-se contra ele, não achava que o faria. Enquanto os garotos fugiam
assustados do lugar, Menino e Amigo limparam seus ferimentos e soltaram Arco.
Comprovadamente, eram o bando de covardes que Unha pensou que fossem. Repetente
estava sozinho.
- Porque
será que ele nos ajudou? Ele nem nos conhece e se arriscou tanto! – Disse Arco,
com a voz embargada.
- Não sei
Arco, mas acho que deveríamos ajuda-lo também. Repetente nunca foi derrotado,
nem na escola e nem na rua.. – disse Menino, tentando estancar um corte no
cotovelo.
- Esperem
um pouco, não interrompam agora. Se fosse comigo, eu odiaria ser interrompido!
– Disse Amigo, visivelmente empolgado com o combate que se formava à sua frente.
Repetente
e Unha estavam se encarando, andando em vagarosos círculos. Repetente estava
visivelmente furioso, mas limitava-se a encarar seu adversário, pois pela
primeira vez, um oponente exalava o cheiro característico da adrenalina por
todo o corpo.
- Você
nunca foi um de nós Unha! Nunca foi! E você vai pagar caro por essa traição. –
Repetente controlava-se para não avançar em Unha antes da hora - Minha mãe
sempre disse que se eu continuasse sendo violento acabaria matando alguém um
dia. Pois que seja você o primeiro, seu merda! Vou aproveitar que ainda não
posso ser preso pra fazer você se arrepender do que fez, e depois vou
arrebentar esses outros babacas que estão atrás de você!
- Você
não vai me matar. E eu não vou matar você também. Não quero seu sangue, nem sua
raiva, e não quero mais esse apelido, mas se você quiser brigar, então cai
dentro. Hoje você vai receber justiça, apenas isso. Não vou mais ser chamado de
Unha. Essa fase negra que eu passei usando esse apelido acabou hoje!
Unha
estava concentrado. Sabia que a estranheza de Repetente era incrível e que o
garoto sabia usá-la com maestria. Mas ele não ficaria para trás. Já que não
poderia ter nem uma vida humana normal, e nem uma vida lupina completa, Unha
começaria a usar sua monstruosidade para algo de bom.
Monstruosidade
não. Estranheza.
O sorriso
que se formou no canto da boca de Unha ao pensar em tal palavra fez Repetente
explodir em sua direção, e os dois começaram um combate que filme nenhum
poderia mostrar. Repetente estava tão transtornado que esqueceu o medo que
sentia de Unha. Não havia coreografia. Não havia técnica. O combate foi uma
troca de golpes violentos e crus, um combate feio e decadente, como na
realidade todas as brigas são. Era violência em seu estado mais puro.
Unha fez
vários cortes em Repetente, mas todos superficiais. Os socos que levava dele
eram muito mais danosos. Unha pulava, girava nos calcanhares e desviava-se com
rapidez, enquanto Repetente ficava quase imóvel, apenas aproveitando as brechas
deixadas pelo meio-lobo. Unha acabou indo ao chão com um soco direto no queixo.
Levantou-se com dificuldade, mas o golpe deixou-lhe grogue. Repetente ria-se
como nunca. Bastaria mais um soco e o traidor estaria acabado, pensava. Estava
tão cego pela vitória iminente que nem percebeu o que aconteceu à sua volta.
Menino
correu para as caixas que haviam no galpão e encontrou uma folha de alumínio
mole o suficiente para formar um cone. Amigo chamou um de seus camaradas
falcões que sempre estavam por perto, enquanto Arco encostou suas mãos no chão,
fechou os olhos e concentrou-se. Todos colocaram os tampões de ouvido.
Os
Estranhos falaram várias coisas, mas Unha só entendeu a frase “não vamos deixar
ele sozinho!”.
Arco
produziu uma variação de cores rápida e nauseante, que deixou Repetente
ofuscado e tonto.
Unha
enxergava em preto-e-branco.
O falcão
de Amigo largou um frasco de perfume pego da bolsa de Arco momentos antes aos
pés de Repetente, que levou as mãos à testa e ao nariz no mesmo instante.
O olfato
de Unha não era tão aguçado quanto o de Repetente.
Menino
cutucou seu próprio nariz com uma pena que trazia no bolos e espirrou um trovão
aterrador, que estilhaçou os vidros do galpão e sacudiu a cabeça de Repetente
como um soco, devido à força que seu espirro ganhou ao ser amplificado pelo
cone.
A audição
de Unha não era tão sensível a barulhos graves.
Repetente
estava atordoado. Para Unha, o rapaz em sua frente representava um ótimo
exemplo do tipo de gente que o perseguiu e o desrespeitou por toda sua vida, e
derrotá-lo com a ajuda de pessoas que são tão estranhas quanto ele era uma
libertação. Unha então correu na direção de Repetente e com os dois punhos
fechados derrubou o líder dos garotos, que ficou inconsciente e babando.
Amigo e
Menino apoiaram-se um no ombro do outro para ficarem em pé com mais facilidade.
Arco sentou no chão e chorou de forma barulhenta, para extravasar o nervosismo
que sentiu. Unha ficou parado, observando os dois amigos se apoiando e Menino
afagando a cabeça da garota. Repetente respirava, mas seguiu desacordado.
Uma
ambulância logo chegou para levar Repetente, enquanto os Estranhos foram para o
clube no bosque cuidar dos ferimentos uns dos outros. Arco preparou um lanche
maravilhoso para todos eles.
Para
todos os quatro.
Engraçado você falando das combinações dos poderes deles e falando porque não afetava unha. Espero que unha fique bem mais hard quando adulto, visto que um lobo com o tempo aguça seus 'poderes', do contrário ficarei extremamente puto.
ResponderExcluir#Unhathebest