2.3.12

O Cavaleiro de Três Cabeças


Não é a chuva refrescante que cai no reino de Toroma, não, é a chuva melancólica, lúgubre, que entedia o palhaço e entristece o apaixonado. Não que esteja chovendo o tempo todo no reino: Apenas na mente de Lorde Winchester a chuva não cessa. Lá, a chuva sempre cai e a noite não termina.
De nada adiantou a vitória sobre os bárbaros do norte, nem a aliança com o Império Solar Oriental, e nem a destruição do templo onde acontecia o culto ao demônio Rarúk, que há tanto tempo amedrontava a população de Toroma. Não, nenhuma dessas vitórias brilha na mente do lorde. Nem o sol da manhã refulgindo na sua coroa dourada de Presidente-rei. Nada mais importa desde que seu pequeno milagre foi amaldiçoado.
Aquele maldito bruxo, conselheiro real, e também traidor, estava usando sua posição para engrossar as fileiras de sacrifícios em nome de Rarúk, bem debaixo dos olhos de Winchester. O Lorde o baniu do reino e pôs sua cabeça a prêmio quando descobriu as armações do falsário. Porém, Marake era um ser de puro mal, quase desumano, e não hesitou em abrir um portal demoníaco na alma de Lyrad, a filha de Winchester, linda e sorridente, com apenas oito anos. Agora a garota está de cama, com o corpo coberto por uma espécie de erva amarelada e purulenta, agonizando sem morrer e servindo de morada para Falqual, o general diabólico de Rarúk. Sacerdotes revezam-se o dia inteiro para manter o demônio que habita a garota sob controle, e nem mesmo o Arcebispo pôde fazer algo por Lyrad. Não há esperança, e Winchester não consegue aceitar esse fato. Ele não matará sua filha, e não deixará ninguém fazê-lo.
Os moradores de Toroma preocupam-se com a sanidade mental de seu Presidente-rei e com a saúde de sua rainha. Lady Leodina é hoje apenas uma sombra da estonteante guerreira que era até alguns meses atrás. Ela não hesitava em seguir ao lado do marido nas batalhas, manejando seu arco como um vendaval e guardando as costas de seu amado de qualquer que fosse o mal. Hoje, ela não passa de uma mulher esquálida. Sua pele ressecou, seus seios murcharam e seus olhos embaçaram. Alguns dizem que não morreu apenas por ainda ter uma centelha de esperança, e por ter sido uma guerreira formidável, que não se entregava e não se rendia.
Lorde Winchester era diferente. Quebrava mesas, matava cães, chutava criados, sempre andando de um lado ao outro do castelo, tentando achar uma solução, uma saída. Enviou mensageiros para todos os seus aliados, o que foi um erro, pois muitos deles começaram a organizar uma invasão para aproveitarem-se da crise na corte de Toroma.
Mas uma resposta animadora chegou, trazida por ventos cálidos vindos do leste. O Imperador Mihio enviou seu mais graduado sacerdote e uma delegação dos seus mais valorosos guerreiros para que levassem até Winchester a adaga do Sol e a adaga da Lua, as armas sagradas do Império Solar. Winchester ouviu com atenção as palavras do sacerdote e partiu com eles para sua última tentativa de salvar sua preciosidade.
Dirigiram-se até o Lago Sereno, e lá uma nova maldição começaria.
Lorde Winchester deitou sua filha à beira do Lago, e com palavras malditas acordou Falqual. Antes que o demônio despertasse totalmente, o Presidente-rei deu três beijos em sua pequena: um na testa, para que sua mente fosse sã e justa para governar, um entre os olhos para que eles sempre olhassem todos com igualdade, e outro nos lábios, para que ela nunca se esquecesse do amor de seu pai. E então, Falqual despertou, e trouxe consigo seu senhor Rarúk. Os demônios saíram de dentro da menina, um pela boca, outro pelo ânus, e começaram a gargalhar ante aquele pequenino humano, um ignorante por pensar que poderia fazer algo contra eles.
Porém, os demônios não perceberam que as adagas empunhadas por Winchester eram as adagas que recortaram os céus durante a criação, permitindo que a luz divina passasse pelos buracos feitos no tecido do universo. E assim, Winchester arremeteu contra os demônios. Seu primeiro golpe separou por completo sua filha deles, cortando os fios de sombra que os interligavam. Os demônios se assustaram com o feito e finalmente reconheceram as adagas. Com muito ódio por terem sido enganados, atacaram Winchester ao mesmo tempo, de uma forma brutal e enlouquecida. O Presidente-rei cravou uma adaga em cada demônio, e estes abriram sua cabeça exatamente ao meio. Uma onda de energia surgiu entre eles e os três combatentes começaram a dissolver e misturar-se numa massa disforme que emitia gases venenosos e feixes de uma luz muito intensa. Um dos guerreiros de Mihio conseguiu retirar a jovem princesa Lyrad do local, enquanto que outro guerreiro recuperou as adagas sagradas, jogadas ao chão no momento da dissolução dos demônios.
E da massa disforme dos três corpos surgiu o Cavaleiro de Três cabeças, uma criatura em forma de um grande homem, portando uma armadura de ossos e ostentando três cabeças: A cabeça de Lorde Winchester ladeada pelas cabeças de Rarúk e Falqual. A criatura não tinha braços, apenas pernas que moviam-no vagarosa e idiotamente de um lado para outro. As cabeças, sustentadas por pescoços longos e fortes, passariam a eternidade mordendo-se umas às outras, num frenesi de loucura sem fim. E assim esse monstro passaria a habitar o Lago Sereno, que viria a tornar-se um local proibido, pois passou a emanar uma nuvem tóxica e malcheirosa que mataria quem se aproximasse.
Lyrad recuperou-se em três semanas. Quando adulta, governou como uma mãe para o povo e como um dragão para os inimigos, e não mediu esforços até encontrar e empalar o bruxo Marake. Ela sempre soube a verdade sobre seu pai, mas nunca teve coragem de visitar o monstro que ele se tornara. Não por medo, mas por querer lembrar-se dele de uma forma bonita e forte.
E assim a lenda do Cavaleiro de Três Cabeças perpetuou-se por muitos anos. Alguns dizem que ela ainda vaga pelo Lago, com a cabeça de Lorde Winchester mordendo e atacando os demônios com toda a fúria possível. Outros, dizem que não passa de mito. De toda forma, ninguém aproxima-se do lago para verificar a historia. Apenas aqueles da corte de Toroma sabem a verdade, e afinal de contas, ninguém mais tem a necessidade de saber.

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