Não é a chuva refrescante que cai no reino de Toroma, não, é
a chuva melancólica, lúgubre, que entedia o palhaço e entristece o apaixonado.
Não que esteja chovendo o tempo todo no reino: Apenas na mente de Lorde
Winchester a chuva não cessa. Lá, a chuva sempre cai e a noite não termina.
De nada adiantou a vitória sobre os bárbaros do norte, nem a
aliança com o Império Solar Oriental, e nem a destruição do templo onde
acontecia o culto ao demônio Rarúk, que há tanto tempo amedrontava a população de
Toroma. Não, nenhuma dessas vitórias brilha na mente do lorde. Nem o sol da
manhã refulgindo na sua coroa dourada de Presidente-rei. Nada mais importa
desde que seu pequeno milagre foi amaldiçoado.
Aquele maldito bruxo, conselheiro real, e também traidor,
estava usando sua posição para engrossar as fileiras de sacrifícios em nome de
Rarúk, bem debaixo dos olhos de Winchester. O Lorde o baniu do reino e pôs sua
cabeça a prêmio quando descobriu as armações do falsário. Porém, Marake era um
ser de puro mal, quase desumano, e não hesitou em abrir um portal demoníaco na
alma de Lyrad, a filha de Winchester, linda e sorridente, com apenas oito anos.
Agora a garota está de cama, com o corpo coberto por uma espécie de erva
amarelada e purulenta, agonizando sem morrer e servindo de morada para Falqual,
o general diabólico de Rarúk. Sacerdotes revezam-se o dia inteiro para manter o
demônio que habita a garota sob controle, e nem mesmo o Arcebispo pôde fazer
algo por Lyrad. Não há esperança, e Winchester não consegue aceitar esse fato.
Ele não matará sua filha, e não deixará ninguém fazê-lo.
Os moradores de Toroma preocupam-se com a sanidade mental de
seu Presidente-rei e com a saúde de sua rainha. Lady Leodina é hoje apenas uma
sombra da estonteante guerreira que era até alguns meses atrás. Ela não
hesitava em seguir ao lado do marido nas batalhas, manejando seu arco como um vendaval
e guardando as costas de seu amado de qualquer que fosse o mal. Hoje, ela não
passa de uma mulher esquálida. Sua pele ressecou, seus seios murcharam e seus
olhos embaçaram. Alguns dizem que não morreu apenas por ainda ter uma centelha
de esperança, e por ter sido uma guerreira formidável, que não se entregava e
não se rendia.
Lorde Winchester era diferente. Quebrava mesas, matava cães,
chutava criados, sempre andando de um lado ao outro do castelo, tentando achar
uma solução, uma saída. Enviou mensageiros para todos os seus aliados, o que
foi um erro, pois muitos deles começaram a organizar uma invasão para
aproveitarem-se da crise na corte de Toroma.
Mas uma resposta animadora chegou, trazida por ventos
cálidos vindos do leste. O Imperador Mihio enviou seu mais graduado sacerdote e
uma delegação dos seus mais valorosos guerreiros para que levassem até
Winchester a adaga do Sol e a adaga da Lua, as armas sagradas do Império Solar.
Winchester ouviu com atenção as palavras do sacerdote e partiu com eles para
sua última tentativa de salvar sua preciosidade.
Dirigiram-se até o Lago Sereno, e lá uma nova maldição
começaria.
Lorde Winchester deitou sua filha à beira do Lago, e com
palavras malditas acordou Falqual. Antes que o demônio despertasse totalmente,
o Presidente-rei deu três beijos em sua pequena: um na testa, para que sua
mente fosse sã e justa para governar, um entre os olhos para que eles sempre
olhassem todos com igualdade, e outro nos lábios, para que ela nunca se
esquecesse do amor de seu pai. E então, Falqual despertou, e trouxe consigo seu
senhor Rarúk. Os demônios saíram de dentro da menina, um pela boca, outro pelo
ânus, e começaram a gargalhar ante aquele pequenino humano, um ignorante por
pensar que poderia fazer algo contra eles.
Porém, os demônios não perceberam que as adagas empunhadas
por Winchester eram as adagas que recortaram os céus durante a criação,
permitindo que a luz divina passasse pelos buracos feitos no tecido do
universo. E assim, Winchester arremeteu contra os demônios. Seu primeiro golpe
separou por completo sua filha deles, cortando os fios de sombra que os
interligavam. Os demônios se assustaram com o feito e finalmente reconheceram
as adagas. Com muito ódio por terem sido enganados, atacaram Winchester ao
mesmo tempo, de uma forma brutal e enlouquecida. O Presidente-rei cravou uma
adaga em cada demônio, e estes abriram sua cabeça exatamente ao meio. Uma onda
de energia surgiu entre eles e os três combatentes começaram a dissolver e
misturar-se numa massa disforme que emitia gases venenosos e feixes de uma luz
muito intensa. Um dos guerreiros de Mihio conseguiu retirar a jovem princesa
Lyrad do local, enquanto que outro guerreiro recuperou as adagas sagradas,
jogadas ao chão no momento da dissolução dos demônios.
E da massa disforme dos três corpos surgiu o Cavaleiro de
Três cabeças, uma criatura em forma de um grande homem, portando uma armadura
de ossos e ostentando três cabeças: A cabeça de Lorde Winchester ladeada pelas
cabeças de Rarúk e Falqual. A criatura não tinha braços, apenas pernas que
moviam-no vagarosa e idiotamente de um lado para outro. As cabeças, sustentadas
por pescoços longos e fortes, passariam a eternidade mordendo-se umas às
outras, num frenesi de loucura sem fim. E assim esse monstro passaria a habitar
o Lago Sereno, que viria a tornar-se um local proibido, pois passou a emanar uma nuvem
tóxica e malcheirosa que mataria quem se aproximasse.
Lyrad recuperou-se em três semanas. Quando adulta, governou
como uma mãe para o povo e como um dragão para os inimigos, e não mediu
esforços até encontrar e empalar o bruxo Marake. Ela sempre soube a verdade
sobre seu pai, mas nunca teve coragem de visitar o monstro que ele se tornara.
Não por medo, mas por querer lembrar-se dele de uma forma bonita e forte.
E assim a lenda do Cavaleiro de Três Cabeças perpetuou-se
por muitos anos. Alguns dizem que ela ainda vaga pelo Lago, com a cabeça de
Lorde Winchester mordendo e atacando os demônios com toda a fúria possível.
Outros, dizem que não passa de mito. De toda forma, ninguém aproxima-se do lago para verificar a historia. Apenas aqueles da corte de Toroma sabem a
verdade, e afinal de contas, ninguém mais tem a necessidade de saber.
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