As
coisas corriam tranquilas desde o acontecimento que levou Unha a entrar para o
Clube dos Estranhos. Ao contrário do que gostaria, Unha não conseguiu
ganhar outro apelido no clube, e cansado de pedir que não o chamassem daquela
forma, desistiu de se importar. O apelido era só um apelido. Ele havia mudado,
e era isso que importava.
Repetente foi transferido para outro colégio. Sua mãe não tomou nenhuma medida
contra os Estranhos, pois há muito tempo sabia das maldades que seu filho vinha
cometendo e já havia desistido de tentar corrigi-lo. De certa forma, achou que
a surra que seu filho levou serviu-lhe de lição. Estava confusa, pois estava
sentindo-se grata àqueles que agrediram seu próprio filho. Esse era um
sentimento no minimo contraditório.
Unha foi totalmente integrado pelos outros membros do grupo. Amigo mostrou-se
muito mais sociável com ele do que tinha sido com Arco, e a garota, não
deixando de perceber tal fato, ficou enciumada. Menino achava que a amizade
entre eles se deu por causa de suas estranhezas, afinal Amigo considerava Unha
como um de seus companheiros animais. No começo, Unha não gostou muito de ser
comparado à pássaros e rãs, mas com o tempo também se sentiu bastante camarada
de Amigo. Menino sentia-se feliz, pois há pouco menos de 4 meses era um garoto
solitário, e agora, fazendo as contas, tinha 3 grandes amigos, cerca de uns 18
admiradores, 1 clube, 1 arquirrival (derrotado), uma gangue inimiga (dispersa e
derrotada), 1 helicóptero de brinquedo e 3 provas para fazer, sem contar os
vários animais que eram amigos de Amigo e mais 1 casal de pais. Estava
satisfeito. Feliz. Achava que as provas não precisavam estar na lista, mas,
como sua mãe lhe dizia, nada é perfeito.
Os
Estranhos estavam fazendo aulas de Briga com Unha, notadamente o mais forte
fisicamente dentre os quatro. Arco era mais frágil, porém, muito mais veloz que
Amigo. No entanto Amigo coordenava seus movimentos com alguns animais que
estivessem por perto, tornando-se assim um adversário de respeito. Menino era o
mais versátil dentre os quatro, e mesmo sem os animais de Amigo, a velocidade
de Arco e os instintos de Unha, logo se tornou o aluno mais eficiente do
menino-lobo. Seus golpes tinham precisão e força, e ele evitava movimentos
exagerados ou desnecessários. Apesar de tudo, os Estranhos achavam que nunca
mais iriam precisar brigar com ninguém. Mas treinar com Unha era extremamente
divertido, eles adoravam. Na realidade, tudo era uma grande brincadeira.
Incentivado pelas brincadeiras-treino, Menino resolveu começar um
aperfeiçoamento próprio: queria conseguir soltar trovões sem precisar espirrar.
Dirigiu-se até a nascente do riacho do bosque para ficar mais afastado. Treinou
sozinho por meia hora e ficou entediado. Começou a passear pelo bosque, e
depois de algumas horas andando à esmo, viu alguém que chamou sua atenção.
Era um garotinho mais novo, talvez dois anos a menos que Menino e sua turma.
Parecia bem alegre, com roupas bem cuidadas e corpo esteticamente saudável.
Estava juntando folhas de árvore caídas e colocando dentro de uma bolsa de
pano. Menino tentou perceber se ele escolhia pela cor ou pelo tamanho, mas o
garoto não parecia seguir nenhum padrão. Menino resolveu sair da moita que
tinha ficado escondido e dar oi para o garoto. Mas quando o garotinho viu
Menino, se assustou e saiu correndo, jogando as folhas para cima. Ao invés de
cair no chão, as folhas seguiram o rapaz, flutuando pelo ar. Menino ficou
espantado e também contente. Se aquilo fosse obra de alguma estranheza, talvez
tivesse encontrado um membro caçula para seu clube.
Menino contou o que tinha visto para seus amigos. Unha e Amigo conheciam o
garoto. Unha disse que quando andava com Repetente tentaram sacanear o moleque,
mas ele parecia não se importar com nada do que fizessem com ele e apenas
sorria. Repetente o chamou de retardado e parou de implicar, pois não tinha
graça. Amigo disse que os coleguinhas de classe chamavam ele de D’afolha, por
que ele adorava ficar catando folhas e gravetos pelo pátio do colégio. Sem
saber porque, Menino decidiu que se tornaria amigo de D’afolha, e pensou em um
jeito de se aproximar do moleque.
Na
hora do recreio, procurou D’afolha pelo colégio e o encontrou facilmente. Ele
estava chutando uma arvore. Menino se aproximou e começou a chutar a arvore
também. D’afolha olhou para Menino, e sem responder, apenas sorriu e continuou
fazendo o que estava fazendo.
- Por que
estamos chutando a árvore? – perguntou Menino, curioso.
- Pra ver
se caem mais folhas. – respondeu o garoto. Menino presumiu que ele deveria ter
uns 10 ou 11 anos, pois sua voz ainda não começara a engrossar.
- Pra que
você precisa de tantas folhas?
- Por que
elas são minhas amigas. Quanto mais, melhor e elas fazem o que eu quero. Ah,
não! Tem os galhos e os mosquitos e as baratas que a mamãe mata também, e as
cascas de banana e de limão e de laranja e de maçã! Puxa, quase me esqueço
delas! – disse D’afolha, como se esquecê-las fosse o crime mais grave do mundo,
colocando as mãos na cabeça. Menino começou a rir.
- Quer
dizer que só é seu amigo quem faz as coisas que você quer?
O
garoto parou de chutar as folhas e olhou para Menino, com cara de parede.
- Não foi
isso que eu quis dizer.
- Você é
estranho. Gostei de você. Quer entrar para o meu clube?
- Sério?!
Mas, que clube? Ah, nem adianta, acho que minha mãe não vai deixar... Ela diz
que eu sou especial e que não devo me misturar com pessoas que não conheço e
que são inferiores à mim...
D'afolha estava visivelmente triste. Queria entra para o Clube, mesmo não
sabendo o que isso significava de verdade. Menino ficou um pouco irritado com a
forma que o garot falou, mas resolveu ignorar esse sentimento e continuar a
conversa como se não tivesse ouvido nada.
- Pode me
chamar de Menino. Pronto, agora já nos conhecemos. O recreio já está acabando,
mas depois que a aula acabar vou chamar meus outros amigos e vamos falar com a
sua mãe.
Os
Estranhos conseguiram convencer a mãe de D’afolha e ele virou o caçula do
clube. As primeiras semanas se passaram com todos os membros do grupo tentando
descobrir como funcionava a estranheza de D'afolha. Depois de muito tempo de
observação e até de busca em livros e enciclopédias, Arco chegou a uma
conclusão: D’afolha tinha a estranheza de conseguir animar organismos sem vida,
como pedaços de madeira, folhas e até presuntos e insetos mortos. Não os
ressuscitava, mas animava-os e podia faze-los tomar a forma que ele quisesse,
inclusive mudando sua consistência. Ele e Arco ficaram muito amigos. A garota
pintava as folhas e D’afolha fazia elas dançarem e voarem, criando um
espetáculo secreto, que so podia ser visto pelo secreto grupo participante do
Clube.
O
clube ganhou também um poderoso combatente. Unha ensinou D’afolha a brigar e
este se tornou um brigão formidável, pois suas folhas e insetos mortos
obedeciam a seus comandos mentalmente, diferente de Amigo, que tinha que dar
comandos de voz para os animais e torcer para que eles o atendessem. O pequeno
garoto disse que já conseguiu transformar as folhas em coisas afiadas, mas que
não mostraria isso porque poderia machucar os animais de Amigo. Menino cuidava
muito de D’afolha, mas sentia algo estranho quando estava com ele, uma espécie
de mau-pressentimento. Isso se confirmou quando Tobé, um falcão que sempre
vinha visitar Amigo disse que os animais não gostavam muito de D'afolha, porque
ele se metia demais no reino da morte, propriedade que deveria ser exclusiva da
mãe natureza, e que mesmo sem saber, era um profanador. Menino e amigo não
sabiam muito bem o que essa palavra queria dizer, mas não gostaram do que
ouviram e preferiram não contar para os outros.
Menino sempre levava D'afolha para casa, pois prometera para sua mãe que o
faria sempre. Os pais de D’afolha eram muito legais, mas parecia que tinham
medo que as pessoas comuns soubessem da estranheza de seu filho e acabavam
agindo de forma superprotetora. Talvez aí estivesse o problema, pensou Menino,
como se já fosse um analisador de assuntos adultos. Seus pais também já foram
assim, mas com o tempo passaram a deixá-lo mais livre e ele se tornou um garoto
valente. D'afolha, apesar de esperto e alegre, tinha muitos receios. As vezes
ele tinha até medo de subir as escadas do clube. Mas o que Menino percebia era
que aquela era uma família extremamente unida. O amor dos pais era visível em
cada gesto. Em segredo, a mãe de D'afolha o agradeceu por cuidar de seu filho,
permitindo que ele pudesse visitar o mundo sem precisar fugir de casa, e lhe
deu um beijo no rosto. Menino guardou aquela sensação por muito tempo, passando
a mão no local onde havia sido beijado por uma mulher que não era sua mãe.
Pensou se um beijo de Arco também causaria aquela sensação.
Numa segunda-feira, os Estranhos sentiram falta de D’afolha no colégio. ele já
havia ficado gripado algumas vezes, mas sempre ligava avisando que ia faltar e
que não poderia ir ao clube. Procuraram pelo colégio inteiro, até que o Sr.
Borba, o diretor, veio falar com eles. Ele tinha voz grossa e cara de mau, e
sua barriga chegava antes que ele à maioria dos lugares. Amigo dizia que a
placa em sua porta devia ser mudada de Diretor para Doador profissional de
broncas.
- Ei
vocês aí pirralhos, vocês são amigos do Everaldo Soares não são?
Os
estranhos se entreolharam. Menino tomou a frente da conversa.
- De quem?
-
Everaldo Soares, que vocês idiotamente chamam de D’afolha.
- Somos
sim, o que aconteceu com ele?
- Ele vai
ser transferido para outro colégio, pediu pra avisá-los e dizer que gostou
muito de ter conhecido todos vocês.
- Como
assim! Os pais dele não disseram nada pra gente! - disse Arco, indignada.
Menino encostou-se na parede, como que pressentindo que iriam ouvir algo ruim a
seguir. Estava malditamente certo.
- Vocês
não estão sabendo? Ele vai morar com uma tia agora, acho que é a madrinha dele.
- Mas
porque?! - disse Unha, confuso - O senhor sabe o motivo?
-
Everaldo e os pais sofreram um acidente de carro esta noite. Ele sobreviveu e
está bem, mas os pais estão mortos.
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