23.9.13

08 - O Menino que Espirrava Trovões! - Aquele que faz chover morte

   Não se consegue imaginar o que é sentir pavor até que ele te domine de uma forma tão poderosa que te deixa paralisado, sem ar. Ele te prende da cabeça aos pés e te segura no lugar de uma forma que chega a parecer que você é tetraplégico. O ar vibra, mas ao mesmo tempo parece que tudo está estático. É como aquele sonho em que você tenta correr com todas as forças, ou então gritar, mas nada acontece, e você apenas assiste as coisas acontecendo.
   Menino estava paralisado. Em pânico, não sabia o que fazer. Queria ajudar Amigo a carregar Arco e fugir dali, mas não conseguia se mover. Os cadáveres avançavam lentamente na direção deles, mais lentamente ainda na cabeça de Menino. Os vermes saltavam de todos os buracos, e os corpos emanavam um cheiro insuportável, impossível. No chão iam ficando pedaços de carne podre misturados a uma mistura de sangue coagulado e outras coisas que Menino não podia nem supor o que eram.
   Ele olhou ao redor e viu seus amigos em estado de choque. Unha estava afastado, com uma das mãos no nariz e a outra apoiando seu corpo contra o muro. Sentia náuseas. Amigo e Arco estavam fora da jogada também, e já não se sabia qual dos dois estava amparando quem. Cabia apenas a Menino tomar alguma decisão. D’afolha já havia tomado a sua: queria os Estranhos fora dali, fora de seu mundo, fosse da maneira que fosse.
   Menino pensou naqueles dias que passaram juntos. Não era justo que o menininho passasse por esta barra tão pesada sozinho. Tinha que ajuda-lo, mas não sabia como. Ele estava fora de si, e poderia mata-los, de verdade. Pensando nisso, um calafrio percorreu sua espinha, e mais do que tudo, ele agora sentiu medo de morrer. Ele não poderia morrer, não agora, que sua vida estava tão completa. Não agora, que tinha amigos de verdade. Olhando para D’afolha, ele percebeu que seu amigo não existia mais ali dentro daquela mente. Seus olhos estavam cinzentos, sem brilho algum. Parecia estar morto, assim como os cadáveres que estava controlando. Mas, no fundo, bem lá no fundo, Menino pôde ver algo que tentava resistir a toda aquela loucura. Parecia tentar lhe dizer algo.
   “Me ajuda”
   Como num estalo, Menino acordou de seu transe. Havia treinado por alguns poucos meses apenas, mas não seria em vão. Os cadáveres avançavam cada vez mais, e só ele poderia por um fim àquela situação. Pensou em chuvas, tormentas, tempestades que já vira em filmes e desenhos. Lembrou dos raios que caíam no horizonte quando chovia, e de como gostava de imitá-los, trovejando junto com eles. Desde o berço, essa sempre foi sua brincadeira favorita. Ninguém mais, no mundo inteiro, podia cantar junto com os relâmpagos, na mesma língua, a mesma letra de musica.
   Pulou para a frente de Amigo e Arco e colocando-se entre eles e o cadáver da mãe de D’afolha. Sem precisar de uma pena ou de nenhum outro estímulo, Menino espirrou. O barulho foi assustador. Direcionado por suas mãos, o deslocamento de ar reduziu todo o tórax do cadáver a uma sopa de carne e ossos que se espalharam no ar. O liquido choveu sobre D’afolha, que olhava perplexo para seu antigo amigo. Seu rosto contorceu-se num esgar sombrio. Um sorriso parecia abrir o rosto do garoto ao meio, decorado pelas gotas e restos do cadáver de sua mãe. Com um movimento de sua mão direita, ele fez seu pai morto voar sobre Menino. As mãos e a mandíbula abertas significavam que, se ele não escapasse, estaria morto. No ultimo momento, Unha o tirou do caminho, mas foi empurrado contra uma das árvores do jardim, e batendo a cabeça no tronco, desmaiou.
   Menino levantou, cambaleante, e correu até Unha. “Não se machucou, só acabou dormindo”. Levantou-se e olhou ao redor. D’afolha estava procurando o corpo de seu pai, que sumiu no jardim. Falava palavras sem nexo; os olhos dançavam nas orbitas, sem coordenação nenhuma. Menino levantou e encarou seu amigo. O garotinho, ainda procurando o pai nos arredores, percebeu que menino o encarava, e depois de algum tempo, pousou os olhos no amigo e o encarou. Menino estava diferente. Seu rosto estava transformado. As sobrancelhas franzidas, o olhar concentrado. Passo por passo, começou a andar na direção de D’afolha. Mesmo em sua loucura, ele sentiu medo.
   Encontrou seu pai jogado em um canto do jardim e o reanimou novamente. O corpo pairou sobre a grama e se achegou ao filho. D’afolha fechou os olhos e estendeu  os braços.
   Menino parou sua caminhada e observou o grotesco tomando forma. A personificação do horror.
   O cadáver pairou a um metro do chão. Os restos da mãe morta começaram a se aproximar e a mover-se, como se fosse um catarro escorrendo pela parede. Com a carne e o sangue, D’afolha fez quatro pernas para seu pai. O formato lembrava patas de aranha. Com o resto dos ossos e cabelo, fez uma espada, um pequeno escudo e uma coroa para armar o pai. D’afolha sentiu medo de Menino, e portanto invocou seu cavaleiro das profundezas do abismo de sua própria mente. Abriu os olhos, e vendo para sua criação, sorriu.
   Não fossem as armas, tudo pareceria um grande monte de carne moída.
   Menino tremeu, mas ao invés de recuar, cerrou os punhos e usando toda a força que tinha, caminhou na direção de D’afolha. Estava cansado daquilo tudo. D’a folha ficou ainda mais irritado. Para ele, Menino deveria estar fugindo agora. Emitindo um som que misturava grito e arroto, apontou para seu antigo amigo e ordenou que a criatura atacasse. O monstro avançou, mas Menino o ignorou. Caminhando devagar, fitava D’afolha nos olhos. O monstro deu o primeiro golpe com a espada materna, mas o garoto apenas desviou, dando um passo para o lado. D’afolha pareceu tremer, seu sorriso demoníaco falhou. Não esperava que ele conseguisse escapar. Menino virou-se para a criatura e disparou um espirro, mas a coisa defendeu-se com o escudo de ossos, dispersando a onda sonora.
   A criatura continuou atacando seguidamente, e Menino continuou desviando-se. D’afolha ainda era criança, e não conseguia controlar sua criação com muita agilidade. “Se ele fosse adulto, eu tava ferrado” pensou Menino. Coordenar algo tão grande era um desafio, e o menininho parecia estar ficando cada vez mais cansado.
   Porém, num vacilo, a criatura conseguiu atingir Menino com o escudo. Enquanto cambaleava, sentiu um golpe de espada abrindo suas costas. Menino caiu de costas, e sua visão começou a ficar turva. A dor era lancinante. Sua visão embaçou, seu estômago revirou-se.
   Passados alguns segundos, para espanto de D’afolha, Menino levantou-se. Ele não poderia desistir. Arco e Amigo estavam paralisados, Unha estava desacordado, e principalmente, precisava salvar D’afolha.
   Sentiu a camisa grudando no corpo, o sangue pingando no chão. Deu alguns tapas no rosto para acordar e encarou a cena à sua frente. Chacoalhou os ombros, balançou a cabeça, abaixou-se, colocou as mãos no chão, respirou fundo e correu.
   A cada ação de Menino, D’afolha ficava mais incrédulo. Sua loucura não deixava ele antever as ações que Menino tomaria. Enfurecido, passou a guiar o monstro de forma descontrolada.
   Menino desviava-se ainda mais facilmente agora, com a criatura desferindo golpes à esmo. O treino físico de Unha surtiu efeito. Ele se sentia ágil, forte, e sabia o que fazer. Em um golpe de espada, menino conseguiu pular e pisar na arma do monstro. Pegou impulso, e quando estava passando por cima da criatura, espirrou, arrancando-lhe o braço. Caiu no chão, e tomando impulso novamente, escorregou para baixo do ser.    Algumas pedras e areia entraram em seu ferimento, mas ele só iria sentir isso mais tarde. Sua adrenalina estava a mil. Parou embaixo do monstro e espirrou novamente. Um buraco foi aberto de baixo para cima, separando o monstro em vários pedaços, e novamente fazendo chover sangue e carne podre. Um chafariz da morte.
   D’afolha gritou. Sua voz estava carregada de ódio, tristeza e medo. Menino levantou-se e começou a, uma vez mais, caminhar na direção dele. Enfurecido, o garotinho endureceu algumas folhas de árvore e as deixou pontiagudas, lançando-as contra Menino.
   Ele caminhava firmemente, ignorando as folhas que entravam em seu corpo. D’afolha lançava mais e mais, e Menino já começava a se parecer com um porco-espinho. Vendo que não funcionava, estendeu as mãos e forçando, aos poucos começou a fechá-las. Menino demorou a entender o que estava acontecendo. Todo seu corpo passou a formigar, e gotas de sangue brotavam por toda sua pele. Era como se minúsculas agulhas estivessem entrando e saindo de seu corpo à uma velocidade incrível. Com muito esforço, continuou avançando. A sensação foi diminuindo aos poucos, e o cansaço de D’afolha era visível. Menino compreendeu o que estava acontecendo quando lembrou-se de uma aula de higiene, que todo o colégio teve junto. “Células mortas”, pensou.
   Menino se aproximou, cerrou os punhos e com toda a força que ainda lhe restava, acertou um soco no rosto de D’afolha. O garotinho foi alguns passos para trás, mas logo se recuperou. Quando voltou-se novamente para Menino, este já estava bem na sua frente, e abrindo os braços, o abraçou.
   D’afolha arregalou os olhos e ficou paralisado.
   - Sinto muito, D’afolha. Meus pêsames.
   Aos poucos, a respiração de D’afolha começou a ficar ofegante, e lentamente ele foi acordando. Ele então abraçou Menino também. As folhas amoleceram e caíram de suas costas.
   D’afolha chorou todas as lágrimas que podia.
   Menino sorriu, fechou os olhos e desfaleceu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário