10.6.14

As calças de Margareth

    Existem muitas coisas idiotas que podem ser feitas em uma guerra. Dentre as piores, está arriscar a vida por uma calça. Este é um relato de um velho decrépito, no fim de sua vida, sem um olho e com um pé a menos. Mas este velho lutou na primeira grande guerra e sobreviveu ao bombardeio nazista na segunda.
    Minha história começa no inverno, nos campos alagados e esburacados da Europa. Você não sabe o inferno que eram aquelas trincheiras todas. Agora imagine elas cobertas de gelo. O cheiro de sangue e bosta não melhorava muito com o frio. Se melhorava, nós estávamos com aquele fedor tão entranhado em nossas mentes que não sentíamos a diferença.
    Bem, no inverno de 1916 recebi um pacote do correio. Geralmente os soldados recebiam apenas cartas ou fotos de suas namoradas seminuas, posando como pin-ups, como se fosse um sacrifício para animar um pouco seus amados. Isso se o carteiro não fosse picotado ou explodido antes de entregar as correspondências. Nossas vidas resumiam-se a esperar, jogar algumas granadas quando tínhamos, proteger-se dos bombardeios, disparar um ou outro tiro e passar fome. Porém, aquele pacote curioso alterou um pouco minha rotina. Ainda não estávamos em época de natal, então, não fazia ideia do que poderia ser aquilo.
    Abri o pacote e me deparei com dois objetos: uma foto e uma calça de lã. Estranhei a calça, e observei a foto. Nela, Margareth posava com roupas de banho. Cada vez que pensava nela e na nossa distância, o frio aumentava. Atrás da foto, ela havia escrito: “Use esta calça que lhe fiz quando sentir frio. Com amor, Margareth. Ps.: Volte vivo, mesmo que não inteiro”. A calça era feita de tricô, com lã vermelha. Talvez ela estivesse vendo a foto de algum soldado francês quando teve a ideia.
    Depois que coloquei a calça, fiquei praticamente dois meses sem tirá-la. Tomei pouquíssimos banhos durante este período. Eram tempos difíceis, e manter-se limpo era menos importante do que manter-se vivo ou são.
    Quando os tanques vieram, conseguimos avançar algumas posições e tomar uma vila. A trincheira já estava com o formato da minha bunda à esta altura. Os homens da inteligência levaram dois dias para comprovar que o riacho da vila não estava envenenado. Aproveitei para tomar um banho, mesmo morrendo de frio.
    Eu estava apenas com a farda e terminando de lavar as calças de Margareth quando os tiros começaram. Uma corneta soou, chamando-nos para o combate, e na correria deixei a calça para trás. Depois de muita troca de tiros e morte, acabamos expulsos da vila. Recuamos até uma posição afastada, nos protegendo em velhas trincheiras cheias de cadáveres secos. De novo naquelas malditas trincheiras! Cheguei a aprender a gostar de ratos por causa delas.
    Durante a noite, me arrastei por trás das linhas inimigas, sem avisar meus superiores. Quem sabe, se alguém descobrisse, me mandavam para casa, pensei, não seria tão ruim. Me esgueirei até o riacho sem problemas e peguei a calça exatamente onde havia deixado. O que aqueles chucrutes estavam fazendo que não colocaram nenhum sentinela pra vigiar a vila?
    Quando eu acabei de vestir as calças vermelhas, o tiroteio recomeçou. Me enfiei atrás de uma árvore, com minha calça da farda em uma mão e minha pistola na outra. Alguém estava atacando o lugar durante a noite. Não deveria ser meu regimento porque, até eu sair do alojamento, leia-se trincheira imunda, não havia sido planejado nada.
    Em meio àquela confusão, tentei correr de volta para meus compatriotas. Eu tinha de ser rápido. Quando comecei a correr, escutei gritos e tiros. Balas passaram voando perto de mim. Parei e ergui as mãos, uma delas protegendo os olhos dos faróis de algum carro de guerra. Ouvi alguns gritos na língua afeminada dos francos e fiquei mais aliviado. Tínhamos recebido reforços.
    Depois de alguma horas, quando minha tropa também veio ao acampamento encontrar os franceses que haviam recuperado a vila, descobri que os franceses só não tinham atirado em mim porque viram minhas calças vermelhas, e pensaram ser algum dos seus soldados que tinha sido tomado por alguma crise de saudosismo.

    Resumindo, naquele dia as calças de lã que Margareth me fez salvaram minha vida.

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