Existem muitas coisas idiotas que
podem ser feitas em uma guerra. Dentre as piores, está arriscar a vida por uma
calça. Este é um relato de um velho decrépito, no fim de sua vida, sem um olho
e com um pé a menos. Mas este velho lutou na primeira grande guerra e
sobreviveu ao bombardeio nazista na segunda.
Minha história começa no inverno,
nos campos alagados e esburacados da Europa. Você não sabe o inferno que eram
aquelas trincheiras todas. Agora imagine elas cobertas de gelo. O cheiro de
sangue e bosta não melhorava muito com o frio. Se melhorava, nós estávamos com
aquele fedor tão entranhado em nossas mentes que não sentíamos a diferença.
Bem, no inverno de 1916 recebi um
pacote do correio. Geralmente os soldados recebiam apenas cartas ou fotos de
suas namoradas seminuas, posando como pin-ups, como se fosse um sacrifício para
animar um pouco seus amados. Isso se o carteiro não fosse picotado ou explodido
antes de entregar as correspondências. Nossas vidas resumiam-se a esperar, jogar
algumas granadas quando tínhamos, proteger-se dos bombardeios, disparar um ou
outro tiro e passar fome. Porém, aquele pacote curioso alterou um pouco minha
rotina. Ainda não estávamos em época de natal, então, não fazia ideia do que
poderia ser aquilo.
Abri o pacote e me deparei com dois
objetos: uma foto e uma calça de lã. Estranhei a calça, e observei a foto.
Nela, Margareth posava com roupas de banho. Cada vez que pensava nela e na
nossa distância, o frio aumentava. Atrás da foto, ela havia escrito: “Use esta
calça que lhe fiz quando sentir frio. Com amor, Margareth. Ps.: Volte vivo,
mesmo que não inteiro”. A calça era feita de tricô, com lã vermelha. Talvez ela
estivesse vendo a foto de algum soldado francês quando teve a ideia.
Depois que coloquei a calça, fiquei
praticamente dois meses sem tirá-la. Tomei pouquíssimos banhos durante este
período. Eram tempos difíceis, e manter-se limpo era menos importante do que
manter-se vivo ou são.
Quando os tanques vieram,
conseguimos avançar algumas posições e tomar uma vila. A trincheira já estava
com o formato da minha bunda à esta altura. Os homens da inteligência levaram
dois dias para comprovar que o riacho da vila não estava envenenado. Aproveitei
para tomar um banho, mesmo morrendo de frio.
Eu estava apenas com a farda e
terminando de lavar as calças de Margareth quando os tiros começaram. Uma
corneta soou, chamando-nos para o combate, e na correria deixei a calça para
trás. Depois de muita troca de tiros e morte, acabamos expulsos da vila.
Recuamos até uma posição afastada, nos protegendo em velhas trincheiras cheias
de cadáveres secos. De novo naquelas malditas trincheiras! Cheguei a aprender a
gostar de ratos por causa delas.
Durante a noite, me arrastei por
trás das linhas inimigas, sem avisar meus superiores. Quem sabe, se alguém
descobrisse, me mandavam para casa, pensei, não seria tão ruim. Me esgueirei
até o riacho sem problemas e peguei a calça exatamente onde havia deixado. O
que aqueles chucrutes estavam fazendo que não colocaram nenhum sentinela pra
vigiar a vila?
Quando eu
acabei de vestir as calças vermelhas, o tiroteio recomeçou. Me enfiei atrás de
uma árvore, com minha calça da farda em uma mão e minha pistola na outra.
Alguém estava atacando o lugar durante a noite. Não deveria ser meu regimento
porque, até eu sair do alojamento, leia-se trincheira imunda, não havia sido
planejado nada.
Em meio àquela confusão, tentei
correr de volta para meus compatriotas. Eu tinha de ser rápido. Quando comecei
a correr, escutei gritos e tiros. Balas passaram voando perto de mim. Parei e
ergui as mãos, uma delas protegendo os olhos dos faróis de algum carro de
guerra. Ouvi alguns gritos na língua afeminada dos francos e fiquei mais
aliviado. Tínhamos recebido reforços.
Depois de alguma horas, quando
minha tropa também veio ao acampamento encontrar os franceses que haviam
recuperado a vila, descobri que os franceses só não tinham atirado em mim
porque viram minhas calças vermelhas, e pensaram ser algum dos seus soldados
que tinha sido tomado por alguma crise de saudosismo.
Resumindo, naquele dia as calças de
lã que Margareth me fez salvaram minha vida.
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