24.4.15

Um amor que já foi

    As águas de minha banheira nunca saíam para os enferrujados tubos do encanamento límpidas, com shampoos e sabonetes diluídos. Às vezes amareladas, em ativismo contra as descargas. Às vezes escarlates como meus punhos lacerados. 

    Mas quando ele me visita, às águas não mudam de cor. Apenas se vão para a tubulação, minimamente mais viscosas. 

    Ele me toca da mesma forma. Das primeiras vezes, desmaiava. Pensei que me afogaria, mas quando acordava, a banheira estava sempre seca, a tampa do ralo colocada sobre a saboneteira. Nas seguintes, eu gritava, corria, estapeava-me tentando acordar de mim mesma. Mas quando eu olhava para a banheira, ele não estava mais lá. Ficava dias sem tomar banho, ou tomando banho na casa de minha mãe ou de amigas. Apenas ir ao banheiro me deixava tensa a ponto de dar choques ao encostar na maçaneta. Uns diziam que isso é impossível, outros diziam que era apenas estática. Mas eu sabia que estavam errados. 

    Nós éramos recém-casados, e usávamos muito a banheira. O banho geralmente era apenas um pretexto. Quando a higiene era a intenção, usávamos o chuveiro. As mãos dele sempre foram grandes e finas, quase delicadas. Mas eram fortes. Firmes. Os pelos de seu braço eram finos e pequenos. Ele só ia além das mãos por capricho, pois pra mim, não precisava de mais nada. 

    Quando ele bateu sua moto e o caminhão o esmagou seus braços foram a única coisa que ficaram intactas. O caixão desceu fechado até ser coberto por aquela terra cheia de musgo e grama, rescendendo a chuva. Demorei duas semanas pra chorar, mas depois disso, eu não podia dormir antes de encharcar o travesseiro. 

    No primeiro aniversário do acidente, ele me visitou,  e com o tempo, me habituei. Eu me recostava na banheira, e, num piscar de olhos, seus braços estavam lá, translúcidos, pálidos como cerâmica. Flutuavam, e ao mesmo tempo, fixavam-se em algum lugar impensável. Pareciam sair da água. No começo, me abraçavam e ficávamos assim. Lágrimas escorriam, e eu deixava que fluíssem. Me arrepiava, sabia que aquilo não era certo, que não era ele, que era apenas uma parte perturbada de sua alma confusa. Mas era ele, sim, era, e eu o tinha por mais alguns instantes. Eu sei que deveria tocar minha vida, descer desse trem e sair do subterrâneo, sabia que ele deveria ir para a clareira no fim do caminho. Mas éramos recém-casados, estávamos sincronizados, éramos apenas um, e com uma violência inexprimível, fomos amputados um do outro. 

    Certa vez, percebi que um par de olhos flutuava sobre mim. Pareciam os olhos dele. Eu precisava que fossem os olhos dele. Com o tempo, os abraços passaram a ser carícias. Ele me confortava, eu me intumescia, umedecia, ele me explorava, esquadrinhava, eu chorava e ria. Inflamava. Água, e também, fogo. 

    Olhos nos observavam. Vários. Muitos. Tínhamos platéia. Vorazes, nos tinham como um espetáculo macabro e inaceitável. Meus pecados aumentavam. Eu aceitava tudo aquilo, participava, mas depois de ver aquela centena de olhos sobre nós, eu percebi que, acima de tudo, eu estava o prendendo. 

    Foi quando decidi. No dia que deveria ser aniversário de nosso casamento, ele veio mais mais uma vez. Eu resisti. Os braços baixavam, eu os erguia, os sustentava. Minha mente lutava contra meu próprio corpo. Então, juntei todo meu amor, e usando toda a força possível, sussurrei: "Não". O banheiro brilhou. A lâmpada falhou, os olhos enegreceram, pareciam moscas, e senti uma vibração, uma pressão negativa. O banheiro estava envolto em uma aura verde, eu não conseguia falar, nem gritar. Vomitava mentalmente palavras de orações que conhecia e não acreditava. A lâmpada explodiu, e com seu abraço, ele me protegeu dos cacos maiores. E então a lâmpada ainda estava lá, a luz voltou, e os olhos não mais existiam. Ficamos abraçados, na água sangrenta, e eu disse mais uma vez que o amava, mas que ele precisava ir. Acariciou meus cabelos, e os braços de porcelana se desfizeram em pequenos pedaços. 

    Hoje, carrego comigo um pingente, um frasco pequeno com um pouco de pó, farelos de seu braço de cerâmica. Migalhas de um amor eterno, mas que já foi.

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