22.6.12

07 - O Menino que Espirrava Trovões! - Putrefação

  Os Estranhos ficaram desnorteados, sem saber como reagir. No dia anterior eles tinham tomado café da tarde todos juntos na casa de D'afolha. O garoto estava meio quieto na ocasião e, quando Unha perguntou o motivo, a mãe dele se adiantou e contou que ele sempre ficava cabisbaixo aos domingos, que era o dia em que ela e o pai de D’afolha saíam para dançar. Arco tentou tranquilizar D’afolha, dizendo que é normal um casal querer se divertir, e que um dia ele entenderia. O garoto apenas balançou a cabeça e deu um sorriso, mais por vergonha do que por qualquer outro motivo.
  Menino ficou muito abalado com a notícia. Foi muitas vezes até a casa de D'afolha, e seus pais sempre o trataram como se fosse da família.  O diretor explicou que um caminhoneiro dormiu no volante e atingiu o carro deles de frente. A parte dianteira foi esmagada na hora, mas como D'afolha estava com cinto de segurança, sofreu apenas alguns arranhões e contusões.  O desmaio foi devido principalmente ao susto. Os Estranhos combinaram de ir ao velório à tarde, depois da aula, mas Menino não conseguiu esperar: na hora do recreio, jogou a mochila pela janela e depois pulou o muro da escola, sem avisar nada aos seus amigos. Se D'afolha estivesse em casa, precisaria de ajuda, e não poderia esperar até a tarde.

  Caminhou até a casa de D’afolha e parou em frente ao portão. Não havia visitas, nem velas e nem flores na porta. O portão estava fechado e não parecia haver movimento na casa. "Talvez os corpos ainda estejam no hospital", pensou ele. Menino ficou intrigado. Chamou uma, duas, três vezes e não obteve resposta. Resolveu então pular o muro. Teve alguma dificuldade para apoiar os pés, mas conseguiu galgar o topo com um pouco de esforço. Menino, que olhava pra baixo enquanto subia o muro, não percebeu a movimentação do outro lado da parede e, quando ergueu os olhos para olhar em direção à casa de D’afolha deu de frente com o rosto descabelado e pálido da mãe do garoto, sua silhueta recortada na vidraça da janela. Menino deu um berro e escorregou do muro, caindo de bunda no chão. Ficou muito assustado, mas viu a mãe do rapaz se afastando e voltando para o interior da casa. Com uma voz apática, a mulher regurgitou algumas palavras antes de sumir na escuridão da residencia:

- Vá para casa Menino. O Everaldo não quer brincar.

- Mas, falaram para nós que a senhora estava morta!

- Mentira. Vá para casa Menino.

  Menino achou que tinha algo muito errado com ela. Não havia dúvidas, ela estava viva, rosto meio corado e expressão normal. Mas havia algo errado, Menino tinha certeza. Ele talvez até soubesse a resposta para sua inquietação, mas recusava-se a aceita-la. “Não, não pode ser, ele não faria isso”, pensou o garoto.

  No Clube, os Estranhos esperavam pelo fujão com ansiedade. Arco estava de braços cruzados e parecia brava.

- Aonde você se meteu? - disse a garota, emburrada.

- Fui até a casa de D’afolha. Tem algo estranho acontecendo lá.

  Menino explicou o ocorrido para seus colegas, que ouviram tudo em silêncio, algo raro de acontecer no Clube. Amigo parecia que ia explodir de excitação.

- Caramba! Será que ela virou zumbi?

- Cala a boca, esse tipo de coisa não existe. – Disse Arco, dando um peteleco na testa de Amigo.

- Ai! Sua bruxa! E porque não existiria? Se existem pessoas que falam com animais, outras que são quase animais, e por Deus, tem outras que espirram fenômenos da natureza, por que cargas d’água zumbis não poderiam existir?!

  Arco deu mais dois petelecos em Amigo

- Isso é por ter me chamado de bruxa... e isso... é por deixar minha estranheza de fora da sua explanação!

- Ai! Ai! Droga, o que é explanação?

- Parem de bobagens – disse Unha – Temos que ir lá ver com nossos próprios olhos. De qualquer forma, D'afolha deve estar precisando de ajuda. Vamos tirar esta história a limpo.

  Todos concordaram. Depois que as bolachas acabaram, os Estranhos colocaram-se à caminho da casa de seu membro caçula. Não havia nada de diferente desde a hora em que Menino esteve ali. Resolveram invadir a casa sem chamar ninguém. Os passarinhos que vieram acompanhando Amigo não se aproximaram do lugar, e o garoto estranhou o fato. Unha, de faro apurado, percebeu o inevitável.

- Tem cheiro de carne podre por aqui. Vamos entrar logo.

  Evitando barulhos, os Estranhos pularam o muro e se esgueiraram pelo terreno. Montes de folhas estavam espalhadas pelo chão, assim como alguns animais mortos. Unha ficou mais para trás, arredio, sentindo um odor horrível vindo de dentro da casa. Menino também estava angustiado. Arco e Amigo estavam mais curiosos do que aflitos, e foram eles que se aproximaram primeiro, mas não tiveram coragem de entrar sozinhos. Os quatro chegaram até a porta e hesitaram. Nenhum deles queria abri-la. Menino, vendo que ninguém se adiantava, levou a mão até a maçaneta. Os quatro se olharam, e abriram a porta vagarosamente. Uma lufada de vento apodrecido atingiu o grupo. O miasma era tão denso que podia ser visto, mesmo com a sala às escuras, e as cortinas fechadas. A televisão estava ligada, mas a tela estava em chuviscos. O som de estática da TV era o único que emanava da residencia. D'afolha estava sentado em frente à TV, assistindo àquela imagem que não significava nada. Atrás dele, sentados no sofá, seus pais assistiam ao mesmo programa que o filho. A cena era perturbadora. De repetente, em um movimento brusco, a mãe de D'afolha levantou-se, seus movimentos parecidos com os de um fantoche. O pai continuou sentado, e o garoto não se mexeu. Lentamente, pai e mãe viraram o rosto na direção das crianças, seus corpos permanecendo parados, e o terror apoderando-se dos Estranhos.

  Totalmente ensanguentada, com moscas voando ao seu redor, a mãe de D’afolha foi a primeira a mover-se na direção deles. Parou de súbito e olhou para trás, para seu marido, que vinha rastejando sem as pernas. O casal sorriu, e larvas caíram de rachaduras em suas peles. Menino ficou catatônico. A mulher que vira pela manhã ainda aparentava algo de viva, mas o que via em sua frente agora era um cadáver completo, azulado, fedendo à carniça, com vermes pululando em suas feridas. O pai de D’afolha estava ainda pior. Provavelmente perdeu as pernas no acidente e agora vinha arrastando suas tripas pela casa. Sorriam para os Estranhos, que paralisados, não sabiam o que fazer. Os olhos do casal explodiram de súbito, como se fossem bolhas de sabão, sem emitir ruído, os quatro ao mesmo tempo.

- Olá rrriançass – disse o cadáver do pai, com uma voz gutural e falha, devido à corda vocal em putrefação. Soava como o inferno.

  Arco tonteou e se segurou em Amigo, que estava paralisado. Menino tentou ignorar as aberrações em sua frente e chamou o garotinho. Unha tampava o nariz com a roupa, pois devido ao seu faro apurado, o odor dos dois mortos era ainda pior para ele. Da escuridão da casa, com o pijama sujo de sangue, D'folha caminhou vagarosamente até seus amigos, o rosto inchado pelo choro e com o olhar assustado. Suas mãos tremiam tanto quanto seu queixo. D’afolha estava confuso e perdido. Um corte no braço do cadáver mãe abriu-se esparramando mais vermes no chão.

- Vocês não deveriam ter vindo aqui! – berrou o garotinho, voltando a chorar.

  Menino viu que o medo que sentia era pequeno demais diante do pavor que D’afolha tentava esconder. Resolveu esquecer os monstros sorridentes ali parados e acalmar seu amigo.

- D’a folha, é você que está fazendo isso com seus pais? Você está brincando com eles?

- Qual o problema?! – gritou novamente o rapaz. Unha pensou que ele estava à beira de um colapso nervoso.

- Calma, somos seus amigos, viemos aqui pra te ajudar.

- Não me trate como louco! Eu estou assistindo TV com meus pais, então vão embora!!

- D’afolha, escute – Menino tentava ganhar tempo – Nós viemos aqui prestar condolências. Você deveria deixar seus pais descansarem.

- Não! Não me venha com essa! Não, não, NÃO! Por favor, não venham vocês também dizer que meus pais morreram! Eles não morreram! Olha pra eles, olha! Mamãe está até sorrindo! Aquele médico mau pensou que podia me enganar, mas agora ele tá todo vermelho, tá sim, porque o papai deu uma boa surra nele, sim, deu, uma boa surra. Papai, diga alguma coisa para eles verem que o senhor não está morto! Diga! Mostra pra eles que o médico estava mentindo!

  O Cadáver emitiu alguns sons indecifráveis e deu uma espécie de risada. A espinha de Menino gelou e ele quase urinou nas calças. Os olhos de Unha lacrimejavam, e era impossível dizer se era Arco ou Amigo quem estava mais nauseado pela situação. Menino tentou conversar de novo. D'afolha estva fora de si, os olhos embaçados.

- D’afolha, você têm que entender isso. Seus pais morreram. Todos morrem um dia. Você não pode fazer isso com eles, eles não são folhas e nem animais, não são seus brinquedos! Deixa eles irem!

- Pare com isso! – gritou o menino, dando em seguida uma risada nervosa, descontrolado – Pare com isso! Pare, pare, pare, pare! Vão embora daqui antes que a nossa amizade acabe! Vou ficar de mal, estou avisando! Vão, antes que eu faça com vocês o mesmo que fiz com aqueles médicos e policiais! Vão, antes que eu mate vocês!



Continua...

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