Os Estranhos ficaram desnorteados, sem saber
como reagir. No dia anterior eles tinham tomado café da tarde todos juntos na
casa de D'afolha. O garoto estava meio quieto na ocasião e, quando Unha
perguntou o motivo, a mãe dele se adiantou e contou que ele sempre ficava
cabisbaixo aos domingos, que era o dia em que ela e o pai de D’afolha saíam
para dançar. Arco tentou tranquilizar D’afolha, dizendo que é normal um casal
querer se divertir, e que um dia ele entenderia. O garoto apenas balançou a
cabeça e deu um sorriso, mais por vergonha do que por qualquer outro motivo.
Menino ficou muito
abalado com a notícia. Foi muitas vezes até a casa de D'afolha, e seus pais
sempre o trataram como se fosse da família. O diretor explicou que
um caminhoneiro dormiu no volante e atingiu o carro deles de frente. A parte
dianteira foi esmagada na hora, mas como D'afolha estava com cinto de
segurança, sofreu apenas alguns arranhões e contusões. O
desmaio foi devido principalmente ao susto. Os Estranhos combinaram de ir ao
velório à tarde, depois da aula, mas Menino não conseguiu esperar: na hora do
recreio, jogou a mochila pela janela e depois pulou o muro da escola, sem
avisar nada aos seus amigos. Se D'afolha estivesse em casa, precisaria de
ajuda, e não poderia esperar até a tarde.
Caminhou
até a casa de D’afolha e parou em frente ao portão. Não havia visitas, nem
velas e nem flores na porta. O portão estava fechado e não parecia haver
movimento na casa. "Talvez os corpos ainda estejam no hospital",
pensou ele. Menino ficou intrigado. Chamou uma, duas, três vezes e não obteve
resposta. Resolveu então pular o muro. Teve alguma dificuldade para apoiar os
pés, mas conseguiu galgar o topo com um pouco de esforço. Menino, que olhava
pra baixo enquanto subia o muro, não percebeu a movimentação do outro lado da
parede e, quando ergueu os olhos para olhar em direção à casa de D’afolha deu
de frente com o rosto descabelado e pálido da mãe do garoto, sua silhueta
recortada na vidraça da janela. Menino deu um berro e escorregou do muro,
caindo de bunda no chão. Ficou muito assustado, mas viu a mãe do rapaz se
afastando e voltando para o interior da casa. Com uma voz apática, a mulher
regurgitou algumas palavras antes de sumir na escuridão da residencia:
- Vá para casa Menino. O Everaldo não quer
brincar.
- Mas, falaram para nós que a senhora
estava morta!
- Mentira. Vá para casa Menino.
Menino
achou que tinha algo muito errado com ela. Não havia dúvidas, ela estava viva,
rosto meio corado e expressão normal. Mas havia algo errado, Menino tinha
certeza. Ele talvez até soubesse a resposta para sua inquietação, mas
recusava-se a aceita-la. “Não, não pode ser, ele não faria isso”, pensou o
garoto.
No
Clube, os Estranhos esperavam pelo fujão com ansiedade. Arco estava de braços
cruzados e parecia brava.
- Aonde você se meteu? - disse a garota,
emburrada.
- Fui até a casa de D’afolha. Tem algo
estranho acontecendo lá.
Menino
explicou o ocorrido para seus colegas, que ouviram tudo em silêncio, algo raro
de acontecer no Clube. Amigo parecia que ia explodir de excitação.
- Caramba! Será que ela virou zumbi?
- Cala a boca, esse tipo de coisa não
existe. – Disse Arco, dando um peteleco na testa de Amigo.
- Ai! Sua bruxa! E porque não existiria? Se
existem pessoas que falam com animais, outras que são quase animais, e por
Deus, tem outras que espirram fenômenos da natureza, por que cargas d’água
zumbis não poderiam existir?!
Arco
deu mais dois petelecos em Amigo
- Isso é por ter me chamado de bruxa... e
isso... é por deixar minha estranheza de fora da sua explanação!
- Ai! Ai! Droga, o que é explanação?
- Parem de bobagens – disse Unha – Temos
que ir lá ver com nossos próprios olhos. De qualquer forma, D'afolha deve estar
precisando de ajuda. Vamos tirar esta história a limpo.
Todos
concordaram. Depois que as bolachas acabaram, os Estranhos colocaram-se à
caminho da casa de seu membro caçula. Não havia nada de diferente desde a hora
em que Menino esteve ali. Resolveram invadir a casa sem chamar ninguém. Os
passarinhos que vieram acompanhando Amigo não se aproximaram do lugar, e o
garoto estranhou o fato. Unha, de faro apurado, percebeu o inevitável.
- Tem cheiro de carne podre por aqui. Vamos
entrar logo.
Evitando barulhos,
os Estranhos pularam o muro e se esgueiraram pelo terreno. Montes de folhas
estavam espalhadas pelo chão, assim como alguns animais mortos. Unha ficou mais
para trás, arredio, sentindo um odor horrível vindo de dentro da casa. Menino
também estava angustiado. Arco e Amigo estavam mais curiosos do que aflitos, e
foram eles que se aproximaram primeiro, mas não tiveram coragem de entrar
sozinhos. Os quatro chegaram até a porta e hesitaram. Nenhum deles queria
abri-la. Menino, vendo que ninguém se adiantava, levou a mão até a
maçaneta. Os quatro se olharam, e abriram a porta vagarosamente. Uma lufada de
vento apodrecido atingiu o grupo. O miasma era tão denso que podia ser visto,
mesmo com a sala às escuras, e as cortinas fechadas. A televisão estava ligada,
mas a tela estava em chuviscos. O som de estática da TV era
o único que emanava da residencia. D'afolha estava sentado em frente
à TV, assistindo àquela imagem que não significava nada. Atrás dele, sentados
no sofá, seus pais assistiam ao mesmo programa que o filho. A cena era
perturbadora. De repetente, em um movimento brusco, a mãe de D'afolha
levantou-se, seus movimentos parecidos com os de um fantoche. O pai continuou
sentado, e o garoto não se mexeu. Lentamente, pai e mãe viraram o rosto na direção
das crianças, seus corpos permanecendo parados, e o terror apoderando-se dos
Estranhos.
Totalmente
ensanguentada, com moscas voando ao seu redor, a mãe de D’afolha foi a primeira
a mover-se na direção deles. Parou de súbito e olhou para trás, para seu marido,
que vinha rastejando sem as pernas. O casal sorriu, e larvas caíram de
rachaduras em suas peles. Menino ficou catatônico. A mulher que vira pela manhã
ainda aparentava algo de viva, mas o que via em sua frente agora era um cadáver
completo, azulado, fedendo à carniça, com vermes pululando em suas feridas. O
pai de D’afolha estava ainda pior. Provavelmente perdeu as pernas no acidente e
agora vinha arrastando suas tripas pela casa. Sorriam para os Estranhos, que
paralisados, não sabiam o que fazer. Os olhos do casal explodiram de súbito,
como se fossem bolhas de sabão, sem emitir ruído, os quatro ao mesmo tempo.
- Olá rrriançass – disse o cadáver do pai,
com uma voz gutural e falha, devido à corda vocal em putrefação. Soava como o
inferno.
Arco
tonteou e se segurou em Amigo, que estava paralisado. Menino tentou ignorar as
aberrações em sua frente e chamou o garotinho. Unha tampava o nariz com a
roupa, pois devido ao seu faro apurado, o odor dos dois mortos era ainda pior
para ele. Da escuridão da casa, com o pijama sujo de sangue, D'folha caminhou
vagarosamente até seus amigos, o rosto inchado pelo choro e com o olhar
assustado. Suas mãos tremiam tanto quanto seu queixo. D’afolha estava confuso e
perdido. Um corte no braço do cadáver mãe abriu-se esparramando mais vermes no
chão.
- Vocês não deveriam ter vindo aqui! –
berrou o garotinho, voltando a chorar.
Menino
viu que o medo que sentia era pequeno demais diante do pavor que D’afolha
tentava esconder. Resolveu esquecer os monstros sorridentes ali parados e
acalmar seu amigo.
- D’a folha, é você que está fazendo isso
com seus pais? Você está brincando com eles?
- Qual o problema?! – gritou novamente o
rapaz. Unha pensou que ele estava à beira de um colapso nervoso.
- Calma, somos seus amigos, viemos aqui pra
te ajudar.
- Não me trate como louco! Eu estou
assistindo TV com meus pais, então vão embora!!
- D’afolha, escute – Menino tentava ganhar
tempo – Nós viemos aqui prestar condolências. Você deveria deixar seus pais
descansarem.
- Não! Não me venha com essa! Não, não,
NÃO! Por favor, não venham vocês também dizer que meus pais morreram! Eles não
morreram! Olha pra eles, olha! Mamãe está até sorrindo! Aquele médico mau
pensou que podia me enganar, mas agora ele tá todo vermelho, tá sim, porque o
papai deu uma boa surra nele, sim, deu, uma boa surra. Papai, diga alguma coisa
para eles verem que o senhor não está morto! Diga! Mostra pra eles que o médico
estava mentindo!
O
Cadáver emitiu alguns sons indecifráveis e deu uma espécie de risada. A espinha
de Menino gelou e ele quase urinou nas calças. Os olhos de Unha lacrimejavam, e
era impossível dizer se era Arco ou Amigo quem estava mais nauseado pela
situação. Menino tentou conversar de novo. D'afolha estva fora de si, os olhos
embaçados.
- D’afolha, você têm que entender isso.
Seus pais morreram. Todos morrem um dia. Você não pode fazer isso com eles,
eles não são folhas e nem animais, não são seus brinquedos! Deixa eles irem!
- Pare com isso! – gritou o menino, dando
em seguida uma risada nervosa, descontrolado – Pare com isso! Pare, pare, pare,
pare! Vão embora daqui antes que a nossa amizade acabe! Vou ficar de mal, estou
avisando! Vão, antes que eu faça com vocês o mesmo que fiz com aqueles médicos
e policiais! Vão, antes que eu mate vocês!
Continua...
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