11.8.12

Sombras soberanas


José da Silva tinha, como percebe-se, um nome bastante comum. Isso facilitava sua aproximação com as garotas. “Olá, posso me sentar aqui?” dizia ele, “Claro pode sim” respondiam elas, encantadas. “Qual o seu nome?” “Francisca, e o seu?” “Belo nome, Francisca. O Meu é José. José da Silva, bastante comum, não é?”. Ele era um rapaz alto, esguio, loiro de olhos claros. Seu rosto não chegava a ser quadrado, o que lhe dava algum ar de inocência ainda aos 20 anos. Pelo menos era essa a idade que ele dizia ter, pois carregava em suas costas o peso de muitos séculos. Tinha os dentes muito bem cuidados. Era, de todas as formas possíveis, um cara lindo.
Porém, José escondia-se por trás de sua carapaça de bom moço. Gostava de seduzir moças de família, estudantes de arquitetura ou odontologia. Garotas vivazes e belas, mergulhadas na doce ilusão de que moças estudiosas e cuidadosas estavam imunes ao mal, protegidas por um escudo social impenetrável. José as enredava em sua trama e as dominava completamente. Em seu quarto, as usava muitas e muitas vezes enquanto ainda estavam felizes. Quando eles acabavam, José de fato começava.
Ele gostava de atacar no entorpecimento que se dá no pós-transa, quando os nervos estão ainda ativos, e as emoções estão em seu ápice, podendo transformar o máximo deleite no mais puro e sincero desespero. Seus olhos tornavam-se escarlates, e quando encontrava o olhar das moças, elas não conseguiam se mexer mais, como se fossem insetos sob efeito de veneno aracnídeo. A paralisia não as impedia de raciocinar, e era aí que a tortura se encontrava. Elas viam a aura negra emanando do corpo nu de José. Elas sentiam a dor de seus incisivos perfurando-lhes o pescoço, ouviam o grotesco ruído de sucção, sentiam o calor das gotas de sangue que hora ou outra escapavam pela boca de José e percorriam seus corpos. Mudas e impossibilitadas de chorar, elas debatem-se dentro de sua própria mente, rezam e oram à todos os santos e deuses já catalogados, e algumas chegam a pedir ajuda às forças do submundo, tamanho é o sofrimento. Seu espírito e sua sanidade são trituradas aos poucos. Podem sentir quando a fraqueza se abate sobre elas, e quando a brisa toca os furos recém abertos. Depois de tudo isso, ele ainda as usa mais vezes, agora com se fossem bonecas de carne, dando comandos de voz e fazendo o que ele quer que elas façam. E ele ri, ri muito. Só depois de tudo isso, elas são hipnotizadas, e quando são encontradas pela polícia, não conseguem lembrar de nada. As imagens são apagadas, mas durante a noite, quando fecham os olhos, elas sentem novamente todo o pavor, todo o nojo e a repulsa do acontecido. A população não fica sabendo desses casos. Famílias ricas não querem seus nomes manchados e circulando à boca pequena.
Às vezes José fazia isso com rapazes, para diversificar um pouco seu cardápio. Hipnotizava-os e eles não conseguiam repeli-lo. Ele tinha cerca de 30 escravos ativos. Era só aparecer na frente de algum deles e pronto, José teria a diversão que desejasse. Um rei incontestável.
Era lua cheia. José caminhava sob as marquises, procurando uma nova presa, uma nova alma para sua coleção macabra. Ele viu um rapaz de costas, cabelos escuros e compridos, jaqueta de couro, garrafa de cerveja na mão. “Um belo exemplar” pensou José. Quando se aproximou, José sentiu o único cheiro característico que lhe apavorava e o fazia fugir como um cão assustado. Sua espinha gelou e o sangue teria inundado sua face, se ele ainda tivesse circulação. Tentou fingir e dar meia volta, mas o rapaz de cabelos longos soltou a garrafa de cerveja e disse-lhe: “Te peguei, bicha dos infernos”.
José arregalou os olhos e praticamente voou por entre as pessoas, e tinha certeza que o estranho o perseguia de perto. Alcançou uma escada de incêndio e subiu aos pulos. Seu perseguidor perdeu um pouco de velocidade pois teve de subir pelos degraus, mas não perdeu a pista. José pulava sobre os prédios como um louco, e duas lágrimas escorreram de seus olhos quando ouviu atrás de si um grunhido e o som de roupas rasgando. Quando pulava para outro prédio, foi agarrado por mãos imensas e algo muito pesado caiu em cima dele. José foi arrastado como um skate, e seu rosto perdeu a primeira camada de pele. A coisa saiu de cima de seu corpo, e José, meio tonto, levantou-se e cambaleou. Segurou-se no parapeito e viu quando o monstro ergueu o focinho para cima e uivou para a lua. “Eu não vou terminar assim, sua besta imunda, você é só mais um maldito monstro fétido!”. Liberou sua aura negra e seus olhos ganharam a cor do sangue. O monstro lupino virou-se para ele vagarosamente, e quando ficaram frente à frente, José paralisou, e não pode mais se mexer. Seu pavor aumentou a níveis colossais.
- O que você está fazendo, seu maldito?! – disse José, com a voz carregada de desespero.
- Então agora você sabe como suas vítimas se sentem.
- Você não deveria ser capaz de fazer isso! Vocês são bestas irracionais que só sabem destruir! Já matei vários de sua gente, e sei como agem! Por que não posso me mexer?!?!
- Você se engana, meu caro rapaz. Até hoje, você só enfrentou os pequenos, que te atacavam apenas por instinto. Eu sou o primeiro Alfa que você encontrou, e serei o último. – O Lobisomem era enorme. Sua pelagem era negra, e seus olhos, dourados como a lua. Ele puxou a corda que ia presa em seu pescoço e revelou um crucifixo de madeira com a parte de baixo pontiaguda.
- Então é isso! Uma cruz! Você só pode estar brincando!
- Não, não é uma brincadeira. Nós estamos nesse mundo para livrar os humanos de coisas como você. Fomos amaldiçoados pelo anjo caído e nos tornamos monstros involuntariamente. Mas vocês não. Vocês escolhem ser assim.
- Cale a boca! Você não sabe o que diz! – José tentava se liberar, mas a influencia do objeto sagrado sobre ele era aterradora.
- Sim eu sei. Vocês saem criando escravos à revelia e quando encontram alguém maléfico o suficiente, o transformam em um de vocês. Nenhum vampiro é inocente, rapaz – O monstro esticou um dedo e com um rápido movimento, decepou o nariz de José – Nem um único sequer.
O vampiro berrava a plenos pulmões.
- Seu maldito! Seu monstro! Você acha que vai salvar meus escravos? Você acha que vai libertá-los? Eles já estão perdidos!
- Não, ainda não. Você não pode lhes tomar a alma. Eu vou terminar com você bem aqui, e daqui a uns 5 ou 6 anos, eles terão superado todos os traumas e viverão tranquilamente. Eu me assegurarei disso.
- Olhe... – o desespero bate à porta do vampiro – Escute, eu lhe empresto algumas delas, as melhores, que tal? Por favor, não faça isso!
O monstro negro levantou a cruz e José urinou nas calças.
- Não peça penico agora, seu verme. Vou mandar sua consciência para onde sua alma já habita há muito tempo, e você vai sofrer eternamente. Acha que o demônio gosta de vocês? Ele não gosta de ninguém, e vai torturar você de formas que você nem pode imaginar, e toda noite, depois que você aparentemente morrer, ele vai gargalhar e gargalhar, e no dia seguinte você abrirá os olhos e será dele outra vez.
O Lobisomem cravou a estaca no peito de José. Até então, ele sempre achara que conhecia a dor, mas o que sentiu era algo além do imaginável. Seu corpo incendiou até o pó, e José acordou em um mar de fogo. Ficaria ali pela eternidade.
Naquela noite, em várias casas, 27 jovens teriam a primeira noite tranquila depois de muito tempo. Suas vidas correriam normalmente a partir de então, e os traumas seriam esquecidos aos poucos. Outros vampiros cruzariam seus caminhos, mas eles nunca ficariam sabendo, pois estariam sendo vigiados do alto, onde as sombras são soberanas.

Um comentário:

  1. Muito bom,prende a atenção, é diferente dos demais contos de lobisomem, bacana essa idéia de misturar vampiro e lobisomem.

    Gostei muito, quero mais contos em Paim ^^

    Parabéns, ótimo conto =D

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