29.9.12

Um, dois, três


   Um, dois, três passos. Uma espiada rápida e volta a se abaixar. Conseguiu divisar alguns móveis numa sala iluminada pela luz da TV. Caminhou em volta da casa e foi até a lavanderia. O cão de guarda já não era problema, pois estrebuchava e se debatia no chão após ingerir um pedaço de carne com chumbinho. Caminhou até os fundos e girou a maçaneta da porta dos fundos, que dava acesso à área de serviço, onde ficava a máquina de lavar e alguns varais. Estava aberta.
Distraído, Lúcio Mourão Filho, mais conhecido por seus amigos como Guaxinim, assistia um programa de luta livre, sentado no sofá de sua grande sala. A mansão era de seus pais, que no momento viajavam pela Europa. Sua mãe era uma estilista de renome e seu pai era advogado. Guaxinim tinha em suas mãos uma garrafa de cerveja e um controle remoto. Tinha a mansão toda para si. Era o rei de um mundo luxuoso, perfeito, impenetrável.
   Após passar pela área de serviço, o rapaz, de calça jeans e camisa laranja, tinha livre acesso à mansão. Passou por um pequeno quarto, de empregada, onde alguém chorava baixo. Deve ter sido abusada outra vez, pensou ele. Na cozinha, um balcão amplo se estendia, contendo vasilhames variados e algumas frutas. Em cima da pia, um repolho e uma cenoura jaziam em um recipiente de plástico, esperando pelo dia seguinte como duas crianças num berço. Sentiu um calafrio. Caminhou até a entrada de um pequeno corredor que daria para a sala. No corredor, um espelho refletiu sua figura. Estava com a mesma roupa do dia em que conheceu Guaxinim. Porém, naquele dia ela ainda não usava uma placa de metal na mandíbula, nem tinha o olho esquerdo vazado, e nem um afundamento no crânio. Ele lembrou-se quando, há um bom tempo, talvez uns três anos, voltava da padaria e passava em frente a um posto de gasolina, onde alguns caras faziam uma festa, notadamente embriagados. Guaxinim, um dos caras, achou graça de sua camisa laranja e começou a chama-lo de cenoura, merda-de-índio e outras coisas, implicando com o rapaz sem motivo aparente, como só os filhos de famílias abastadas sabem fazer com tanta maestria. Humilhar é um dom dos ricos, passado de geração em geração. O rapaz não se importou e continuou caminhando. Guaxinim, irritado, resolveu que daria uma lição no moleque suburbano, insolente, metido, ora bolas, era só uma brincadeira, vou ensinar-lhe bons modos. Depois de quarenta minutos de garrafadas e espancamento, o rapaz foi levado ao hospital e sobreviveu. Um milagre, dizia sua mãe. Glórias a Deus, amém.
   Mas agora a situação inverteu-se. Era ele quem se via em cima de guaxinim, com um cabo de enxada nas mãos, já visivelmente ensanguentado, e é guaxinim que chora e agoniza, procurando inutilmente alcançar a gaveta da mesinha de centro, onde se esconde um .38. O rapaz abre a gaveta e com a arma, dá três tiros no pulso direito de Guaxinim, fazendo sua mão separar-se do resto do corpo em alguns retalhos de carne. É quase uma punição divina, um castigo eclesiástico. Um, dois, três.  Pai, filho e espírito santo.
Guaxinim tenta se levantar em vão, mas seus joelhos quebrados não deixam. Com certeza terá que andar de muletas, no mínimo por um ano. A empregada, acordada pelo barulho, assiste a tudo calada, talvez em choque, talvez feliz. Ele manda que ela arrume suas coisas e suma, antes que ele lhe mate. Lógico que ele não faria isso, ele só quer evitar que ela se envolva no inquérito.
   O rapaz resolve parar. Sua mãe deve estar preocupada em casa, pensa ele. Guaxinim já teve o que merecia. Com certeza poderá fazer plásticas decentes, terá tratamento de rei e acompanhamento psicológico para seu trauma.
   Ele apenas voltará para o morro, e irá esperar a policia invadir sua comunidade e mata-lo a tiros na frente de sua mãe.
Pensa ele: “a vingança é algo amargo, muitas vezes desnecessária. Assim como os bons remédios. Essa é uma boa analogia”, e satisfeito, sorri.

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