24.11.12

O Corpo Seco do Caitê

     Balneário Barra do Sul tem algumas lendas interessantes, muitas delas vindas desde o tempo da colonização açoriana. Uma que sempre aparece nos trabalhos escolares sobre folclore é a do Seco do Caitê.
    A versão mais corrente é: existia um senhor de escravos que vivia na região. Muito ruim, dava apenas um camarão por dia para seus escravos, e os castigava costumeiramente. Não tinha filhos e nem família. Seus escravos morriam de fome e o homem apenas comprava outros. Quando o senhor de escravos morreu, seu corpo foi enterrado dentro de sua propriedade, e os escravos foram tomados pelo governo.
    Porém, seu corpo estava tão impregnado pela maldade e podridão de sua alma que a natureza rejeitou-o, e revolvendo-se, tornou a colocar o corpo do terrível homem para fora da terra, deixando-o apodrecer ao ar livre, permitindo que os animais o devorassem e que sofresse as intempéries do clima.
    Não alcançando o mundo espiritual, a alma do homem passa a habitar o esqueleto maldito, buscando uma forma de encontrar o descanso eterno até o dia do juízo.
    Muitas pessoas tratam as lendas apenas como lendas. Mas não os pescadores, pelo menos não os mais velhos e nem os mais espertos. Respeitam a lenda do corpo seco e evitam se aproximar da área. Muitas pessoas diziam ter visto o Seco do Caitê, e ignorar isso seria no mínimo, uma irresponsabilidade.
    Certo dia, um pescador chamado Deco precisou pescar sozinho. Seu colega cortou o pé em uma ostra e acabou ficando em casa. Deco veio de fora, e nunca deu bola para as lendas locais. Pode parecer clichê o fato de nosso personagem não ligar para o que estava à sua espreita, observando-o em meio ao matagal, mas querendo ou não, é comum que pessoas de cidades maiores tenham tendência a pensar no sobrenatural como se nada daquilo existisse. O mato chacoalhando era apenas por conta do vento, os movimentos bruscos deveriam ser de pacas, e o som de coisas batendo deveria ser um tipo de coachar, ou qualquer coisa assim. Deco jogou sua tarrafa varias vezes, e lá pelas três da manha, só tinha pego um peixe. Como ninguém ia pescar no Caitê durante a noite, Deco achou que pegaria muitos peixes, mas se enganou.
    Resolveu parar para descansar. Encostou sua bateira em uma pequena praia e sentou-se na areia. O lugar era no meio do mangue, e ao redor se estendiam alguns quilômetros de mata, mais especificamente, de manguezal. Deco continuou ouvindo os sons estranhos sem dar muita atenção. Até que o barulho começou a aumentar e ele resolveu olhar para trás.
    De dentro do mato, a encarnação da morte arrastava-se à passos lentos. O esqueleto caminhava vagarosamente, os ossos atritando e criando o ruído que Deco vinha ouvindo. Amarelado e trincado, a criatura caminhava passo a passo, tentando equilibrar-se e movendo a mandíbula vagarosamente. Sabe-se lá que maldições estaria proferindo se tivesse cordas vocais. O homem ficou paralisado. Seu reto relaxou e ele defecou nas calças. Os pelos de seu braço se eriçaram e sua garganta tentou em vão emitir algum grito. Suas pernas foram enfraquecendo até que Deco desmaiou.
    Quando era manhã, Deco acordou e se viu na mesma praia em que tinha atracado. Ficou sentado por um bom tempo, observando a água, até que resolveu voltar pra casa. Tão acostumado a fazer isso todas as manhas, Deco demorou para perceber que seus pés estavam diferentes. Eram apenas ossos. Olhou para as mãos e nada além de ossos moviam-se diante de seus olhos. Deco teria dado um grito, mas som algum saiu de sua boca. Ele se olhou no reflexo da água e viu apenas uma caveira, e seu corpo era um amontoado de ossos ensanguentados e alguns restos de pele e nervos. Ele moveu-se numa espécie de corrida de um lado para outro, e se tivesse sistema nervoso, teria enlouquecido. Parou de repente ao avistar um rastro de sangue, e resolveu segui-lo mata adentro. Caminhou por algum tempo até chegar em uma cova improvisada. A terra estava cobrindo parcialmente um corpo enterrado. Deco tirou a terra com as próprias mãos e então compreendeu o que estava acontecendo.

    Durante anos Deco iria esperar, perdendo sua humanidade pouco a pouco, que algum outro aventureiro desavisado passasse por ali, para que, assim como foi feito com ele, pudesse retirar o esqueleto de sua vitima e introduzir-se no corpo roubado, quando finalmente seria enterrado e poderia descansar em paz.

2 comentários: