20.2.13

Os Outros


Ela tá ali! Bem ali, aham, to vendo ela. Ela tem uma outra também. Olha só, mais uma coisa em comum. Caminho até ela e digo Oi! e ela diz oi de volta. Ela sorri e seu sorriso é lindo. A outra dela é linda também, mas é uma beleza feia, que é ruim. O meu outro gosta dela. Fica todo eriçado perto da outra. O outro e a outra, quase nome de filme.
   O outro é ruim. Ele me leva pra assistir umas coisas feias. A gente tá andando assim e de repente ele me puxa pra um beco onde tem um mendigo dormindo. Ele mostra pra mim como é fácil cravar uma faca na aorta. Eu não sei o que é aorta, mas quando ele faz isso sai vermelho das pessoas, e eu fico triste, por que eu não queria estar vendo aquilo, porque é feio e parece errado. Aí ele me leva pra um restaurante chique. A gente trabalha de garçom e serve comida pras pessoas. Todas elas se vestem muito bem, mas tem cheiro ruim. Elas fedem e tentam disfarçar com perfume. O outro disse que o fedor vem de um negócio que todas aquelas pessoas tem. “O fedor vem da carteira” ele disse. Ai a gente espera alguém entrar no banheiro, pode ser homem ou mulher, e daí ele me faz ir com ele até lá, e quando a pessoa fica sozinha ele diz pra mim “Olha só, hoje é dia de jugular”, e de novo sai vermelho, e isso é feio, feio e errado.
   Tem dias que ele fica em casa dormindo, e nesses dias eu acho bom. Tenho tempo pra cheirar flores e dar comida pros passarinhos da praça. Daí nesses dias eu posso jogar dominó com os velhinhos e comer bolinho de carne com café ali na barraquinha. Teve um dia que o outro fez eu assistir ele tirando vermelho de um velhinho da praça. Quando cheguei em casa, eu chorei muito mesmo. Foi o dia mais descrupuloso que eu tive.
   Mas daí eu vi ela, bem ali, esperando o ônibus, e acho que ela tava indo ver o homem no branco que nem eu. Tinha uma outra com ela também. A gente sentou juntos no ônibus, e o outro sentou com a outra no banco de traz. A gente começou a conversar sobre eles, e das coisas que a gente não gostava que eles faziam. Ela me contou que a outra dela era meio maluca, mas não fazia sair vermelho de ninguém. Quando falei disso pra ela, ela disse “Hein, como assim?” e disse que a outra gostava de dar beijo. Ela chamava uns meninos, e as vezes uns caras mais velhos. A outra via eles algumas vezes e depois não via mais. Tirava a roupa com eles e fazia eles ficarem dançando com ela, as vezes na cama, as vezes no chão. Eu não entendi porque ela gostava de fazer isso, por que tirar a roupa dá vergonha, e ela me contou que muitas vezes a outra recebia ligação, e os homens diziam pra outra que ela tinha acabado com a vida deles. O pior que ela falou que a outra fazia ela assistir a dança, e eu falei que isso devia ser chato, e ela disse aham.
   No banco de traz, os outros ficaram fazendo coisas estranhas, e ela disse que era isso que a outra fazia com os homens e meninos. A gente quis descer do ônibus e fugir, mas quando a gente fez eles desceram também. O outro pegou eu e ela, e levou nós dois mais a outra até um beco pra tirar vermelho de um mendigo, e quando ele tirou, a outra começou a rir demais. A gente fugiu pra minha casa e deixou os dois rindo, mas eles eram muito rápidos e alcançaram a gente. Quando a gente chegou no meu quarto, os outros tiraram a roupa e ficaram dançando por muito tempo. E isso começou a acontecer muitos dias.
   Dai agora é assim: toda vez que os outros dançam, eu e ela ficamos passeando na praça, e quando a gente da as mãos eu fico com calor, mas é um calor gostoso. E a gente caminha e toma sorvete, e vai junto no homem no branco, e dai tudo fica muito mais bonito quando eu to com ela. E nem parece que os outros existem.

Um comentário:

  1. O final.. no final dá para perceber, pela última frase, um sentido formado. Os outros, não importarão, quando se está perto e com quem é especial. Bom blog

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