17.3.15

O Homem da Mata

   Chamavam-no de caçador, mas ele negava. Não era um esportista, tampouco um nobre. A mata era mais sua casa do que o conjunto de tábuas e tijolos de barro que se amontoavam perto da cidade encastelada.
   Faltariam linhas para escrever o nome de todos os generais que já tentaram coloca-lo sob o seu estandarte, para que sua flecha guiasse as tantas outras em batalha. Sua fama o antecedia onde quer que fosse. Mas assim como não era um caçador, o homem da mata tampouco era um soldado. Quando a batalha se aproximava, ele pegava seus poucos pertences, seu ajudante de caça e partia. Só voltava com o soar da ultima trombeta de guerra, sem se importar com quem fora o vencedor.
   Algumas vezes durante sua vida ele viu o poder do castelo trocar de mãos. Quando o novo nobre lhe era amigável, ele apenas oferecia uma corsa ou alguns coelhos, e voltava para sua casa. Quando queriam tirá-lo de sua residência ou lhe eram hostis, o homem da mata recheava o caminho entre a cidade e sua casa com armadilhas e disparava suas flechas com tamanha precisão que parecia mais sensato deixa-lo viver sua vida a seu bel prazer, afinal, não valia a pena perder dezenas de homens por conta de apenas um, e ele sempre fora um bom pagador de impostos.
   A única vez que a cidade percebeu a fúria do homem da mata foi quando um dos senhores hostis resolveu colocar fogo em sua humilde residência. Seus arqueiros pensavam em erguer os braços para disparar e logo caíam imóveis, com flechas em seu corpo. Porém, a quantidade de soldados era grande, e flechas de fogo acertaram o local onde estava, incendiando tudo e colocando o homem na mata. Porém, em meio ao bosque que havia ao redor da cidade, o homem se escondeu e disparou suas flechas, incendiando metade das casas e estabelecimentos. Em geral, acertou exatamente onde queria, principalmente as casas de nobres e burgueses e os estabelecimentos dos soldados. No entanto algumas de suas flechas foram desviadas pelo vento, e em sua mente ele lamentou por suas vítimas inocentes. No dia seguinte, voltou para sua casa, trouxe novas tábuas e colocou sobre a estrutura de tijolos, que permanecera em pé. Ninguém interferiu, e não fora mais incomodado desde então.
   Não havia animal que ele não pudesse abater. Ele se misturava à natureza, como se fosse um elemental ou uma alma da floresta. As árvores pareciam reconhece-lo como um igual. Caso precisasse, viajava por quilômetros, escondia-se por horas, não dormia por dias. Em uma dessas andanças, anos atrás, descobriu abandonado um filhote de um animal que não existia em sua região. Descobriu que era chamado lobo, e o criou como um irmão. O animal agia como ele, e em sua natureza, pode ensinar muitas táticas e truques para o homem da mata. Abateram animais impensáveis, provaram quase todas as carnes possíveis e viajaram por todos os cantos do globo. Chegavam a ficar um ano inteiro longe, mas sempre voltavam.
   Porém, certa vez ao voltar, ele viu a cidade de uma forma que nunca havia visto. Cercada por todos os lados, os cidadãos se amontoavam nas muralhas, jogando paus, pedras, óleo quente, disparando flechas e tudo o que podiam para impedir que o exercito invasor entrasse na cidade. De cima da colina, o homem da mata pode ver toda a extensão das forças inimigas. Geralmente ele não se importava e apenas ia embora, esperando o fim do conflito. Mas aquilo estava muito além do que ele já vira. Quase semre, os embates eram políticos, pautados em interesses por terra, dinheiro ou prestigio, coisas banais ou disputas de família. Mas aquela situação era diferente, era como se o mal tomasse corpo e resolvesse aplacar as pessoas da cidade, que se defendiam com o que podiam.
   O homem da mata respirou fundo e consultou seus instintos. Sentiu o cheiro da grama, a umidade do ar. Afagou seu companheiro e comeu uma fruta. Sua alma estava calma, em paz, enquanto as pessoas da cidade estavam morrendo. Ele pensou e calculou, decidindo o que fazer. O Senhor atual vinha sendo um bom governante, justo e honesto na medida do possível. As pessoas pareciam felizes sob sua bandeira, a cidade estava bonita e a vida seguia tranquila.
   Ele aguardou a lua subir, apenas sentindo o mundo. Sabia conversar com ele.
   Seu companheiro latiu uma vez e foi se deitar junto aos arbustos. Ele o esperaria ali. Então, o homem na mata se levantou para salvar a cidade. No breu da mata, ele se escondeu, e os inimigos tremeriam anos depois, escondidos em suas cavernas, ao ouvirem seu nome.
   Envenenou suas flechas e acertou os reservatórios de agua dos atacantes. Abateu alguns generais de ângulos que sugerissem que as flechas vieram da cidade. Alguns soldados perceberam o abate de soldados graduados, e o medo correu por suas espinhas. Havia alguém, dentro da cidade, mirando e derrubando apenas os homens importantes. Os soldados estavam tentando descansar durante a noite, mas as flechas certeiras os colocaram de pé, impedindo seu sono. Procuraram por atiradores nas ameias da muralha, mas estes também descansavam. Perceberam a agitação fora de seus muros, e alguns mais espertos, pensaram no homem da mata. Outros, mais céticos, lembraram que ele nunca se envolvia nos assuntos da cidade. Mas as flechas continuaram a cair nos senhores de guerra, por todos os lados da muralha, dando um animo renovado aos fadigados defensores.
   O homem da mata atingiu os cadeados que prendiam alguns prisioneiros, que iniciaram um combate de dentro para fora. Foram logo mortos por seus captores, mas causaram agitação suficiente para deixa-los ainda mais em panico.
   Ele perfurou colméias de vespas-de-ouro. Elas seguem o seu mel, onde quer que ele esteja. Com flechas embebidas em mel, guiou os insetos para o meio das tropas e causou ainda mais confusao. Com o chegar da manha, os guerreiros encastelados atacaram com força renovada, e o homem da mata passou a atirar flechas a esmo, para ajudar a dispensar e abater os inimigos.
   E então foi aclamado como herói. As pessoas o veneraram e lhe deram presentes. O rei fez um pronunciamento engrandecendo-o e exaltando suas magnificas habilidades. O homem da mata apenas assistiu sem dizer muitas palavras. Chamaram-no para ser professor de arquearia novamente, mas novamente recusou.

   Assim ele permaneceu como uma grande figura da região, até que a próxima intriga palaciana tentasse culpa-lo por algo ou tirar-lhe de suas terras. Nada que ele já não estivesse acostumado.

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