27.3.15

Quando rompi meu casulo

Eu era um medíocre vivendo uma vida medíocre.  

Imaginem um trabalho chato: o meu era pior. Minha função era fazer pacotes das vendas online de uma pequena loja de artigos de escritório. Minha rotina se resumia a puxar fita adesiva, passar em volta de produtos embalados, colocar no correio, verificar rastreamentos, atender clientes mal-humorados ao telefone durante 8 horas por dia. Depois disso, eu saía para estudar um curso chato que estava fazendo para agradar meus pais. As garotas da sala eram ou fúteis ou excêntricas demais, e os caras eram todos uns babacas, sem exceções. Sim, inclusive eu. Em casa minha vida se resumia a pornografia e blogs de humor barato. Trabalhos do curso eu só fazia em cima da hora. A última vez que beijei uma garota foi numa festa da qual não me lembro, tamanho era meu estado de embriaguez.  

Dia após dia eu repetia essa rotina. Estava sempre cansado, tinha pensamentos sobre suicídio eventualmente, e meus amigos diminuíam a cada recusa minha para fazer alguma coisa com eles. Eu tinha apenas dezessete anos, mas estava a caminho da desgraça. Meus pais me achavam um inútil, meu irmão não falava comigo. 

 que acabou; 

Num dia como outro qualquer, minha vida foi derretida e reformulada como se fosse uma estátua de bronze. 

Você pode achar estranho esta quebra repentina em minha narrativa, mas é porque o que aconteceu comigo foi assim também, desesperadoramente repentino.  

Eu voltava pra casa, depois das seis da tarde, num dia quente de outubro, quando senti uma picada no pescoço. Pensei que fosse apenas um mosquito, mas quando passei a mão, puxei um dardo com penas verdes. Aos poucos fui ficando zonzo, e então, caí na rua. A partir daí minha memória se fragmenta em flashes. Me lembro de ser colocado em um carro, de vozes estranhas e de barulho do mar. Quando acordei, já estava aqui. 
  
Abri os olhos e fui tomado por um cheiro de maresia, insuportavelmente puro. Minha cabeça girava e doía. O som de ondas quebrando e pássaros marinhos piando me chegava aos ouvidos em etapas. Virei para o lado da cama e vomitei. 
  
Quando consegui me levantar, a tarde ia chegando ao fim. Eu estava em uma cabana de madeira. O chão era a areia da praia, o telhado era de folhas de palmeira entrelaçadas. Havia apenas a minha cama, com um colchão de tatame, uma mesa rústica com uma cadeira, um fogão à lenha e duas panelas de barro. Caminhei até a janela da frente observei o mar mais azul que eu já havia visto. Era uma imensidão. Pensei estar melhor que o pessoal da Lagoa Azul ou do que o Tom Hanks em náufrago. Tudo ainda era muito irreal pra mim. Minha cabeça girava, eu me sentia sonhando. Voltei pra cama e dormi. 

No dia seguinte, resolvi investigar os meus arredores. Eu estava numa típica ilha de filme. Não cheguei a ficar muito assustado, mas curioso. Aquela curiosidade de ver o-que-foi-o-barulho-la-fora que sempre mata pessoas em filmes de terror. 

Uma praia de areias brancas se estendia por toda a orla, céu limpo e vegetação densa no interior da ilha. quando voltei pra minha cabana, percebi um painel solar pra captação de energia. Lá dentro, vi um amontoado de coisas sob uma lona, que eu não tinha percebido antes. Quando descobri, vi que haviam algumas mudas de roupas e um notebook, ligado por um fio ao painel solar. Não estava entendendo nada. Eu estava me contendo pra não sair correndo dali, sem querer acreditar que eu estava perdido em uma ilha deserta. Aí de repente tem um notebook na minha cabana. Isso não deveria estar no roteiro. Liguei o computador pra ver o que havia nele. 

A área de trabalho estava limpa. Havia sinal de internet, um sinal bom. Fui na pasta de documentos e lá havia um arquivo de texto que abri e li. Ainda hoje me lembro do mar de emoções que eu senti enquanto lia aquilo. 

"Saudações, jovem. Você foi sequestrado por nós. Nós é a palavra que usaremos para referir-nos, bem, a nós mesmos. Mas você pode nos chamar de Grupo de Transmissão da Felicidade Forçada. Somos um grupo que declarou ódio à mediocridade, e você foi considerado o cara mais medíocre num raio de 500 quilômetros a partir da capital de seu estado. Sua vida era inútil, você era inútil e poderia se matar a qualquer momento que não faria grande falta pra ninguém. Os que mais se importavam com você simplesmente diriam que 'foi melhor assim'. 

Então resolvemos mudar sua vida. Você terá acesso a internet neste computador. Porém, você está proibido de entrar em contato com qualquer pessoa ou organização da sua vida passada. Sim, você pode considerar que seja uma vida passada, afinal, pra todos os efeitos, você esta temporariamente morto. Por enquanto, qualquer tentativa de entrar em alguma rede social, login de conta ou jogo ou qualquer outra coisas, procurar nome de parentes, etc., estará bloqueado. Daqui a alguns meses liberaremos isso pra você. Mas acredite, você não ira querer fazê-lo. Pornografia está bloqueada também.  
Neste computador tem um pequeno manual pra sobrevivência na selva. Acho que você pode encontrar bastante coisa útil ali. 
Por enquanto é isso. Viva." 

Eu fiquei olhando a tela por vários minutos, parado, tentando assimilar o que eu tinha lido. 

A coisa toda não fazia o menor sentido. Quem diabos iria projetar toda uma estrutura para tornar a vida de alguém melhor? E o que um sequestro poderia me trazer de bom? Aquilo tudo estava me deixando com dor de cabeça. Procurei alguma coisa pra comer na cabana, e não encontrei nada. Comecei a ficar apavorado. Não havia água também. Senti minha pupila dilatar e comecei a suar. Sentei na cama, em pânico, pensando voumorrerdefome voumorrerdefome AhmeuDeusvoumorrerdefome. Fiquei naquele estado por algumas horas até que minha cabeça idiota se lembrou do tal manual no notebook. Li os tópicos sobre frutos da ilha e sobre água, pra saber ver se esta contaminada ou não, na medida do possível. Vi alguns vídeos no youtube também. 

Caminhei pela borda do matagal, com medo de perder a localização da barraca, e não encontrei grande coisa. Tinha algo parecido com amoras, mas eram poucos e eu já começava a ficar fraco. Com uma faca que encontrei na barraca, marquei algumas árvores e me aventurei um pouco mais mata adentro. Vi alguns pequenos animais e pássaros. Ate ali eu não tinha encontrado nenhum grande predador, e isso era bom.  

Não vou encher o saco contando toda a minha jornada pra me tornar um caçador e explorador, mas fato é que com o tempo eu passei a conhecer a mata e o mar. Não temia mais. E eu me senti melhor do que já havia me sentido em toda a minha vida anterior. Ali, naquela ilha, as coisas que eu fazia tinham proposito. 
Aprendi muitas coisas praticas, li muitos livros pela internet, me informei, estudei coisas interessantes. Não me senti entediado em nenhum momento. 
Depois de uns dois anos vivendo dessa forma, um novo arquivo apareceu no computador. Era uma mensagem programada. 

"Saudações, jovem.  Se estiver lendo isso, não morreu, e isso é bom. Ou talvez tenha morrido, pelo menos aquele seu velho eu já deve ter morrido. Aposto que você deve ter vivido muitas coisas interessantes. Bem, a partir de hoje, você poderá entrar em contato com seus familiares e acessar suas contas pessoais seja lá do que você quiser. Estamos liberando pornografia e jogos também. Dentro de algum tempo, um barco irá aportar na Ilha e, caso queira, poderá embarcar e iniciar seu caminho de volta. Fica a seu critério. Quando chegar no Brasil, e, a essa altura você já deve saber que está bem longe, você recebera uma quantia em dinheiro e uma proposta de emprego. Até lá, boa sorte". 

Olhei aquelas novas informações e me espantei. Algo em mim havia mudado. Algo em mim definitivamente havia mudado. Até ali eu estava vivendo minha nova vida de forma tao intensa que não tinha parado pra pensar em como eu havia realmente me transformado em outra pessoa. 

Não tive interesse em nada que me fora 'liberado'. As pessoas que existiam em minha vida já não faziam tanta falta. Mas é mais por que agora eu estava bem comigo mesmo do que por elas serem pessoas ruins. Na realidade, agora eu as amava de uma forma que nunca havia amado, mas isso não envolvia saudades. 

Antes, eu me enfastiava delas, pareciam todas babacas e inúteis como eu. Mas hoje percebo que minha mãe tinha uma saúde frágil, e se preocupava demais com o restante da família e quase nada consigo mesma. Seu problema com álcool vinha daí. Meu pai, um mecânico, sonhava em ser músico, mas nossa situação financeira o fazia trabalhar demais. Nunca teve tempo para ensaiar ou estudar musica. 

Meus chefes, meus colegas, os professores, enfim, a partir daqueles dias eu compreendi que cada pessoa é um universo e cada um desses universos tem uma quantidade infinita de problemas, e muitas pessoas não sabem lidar com isso. 

Caminhei até a orla pensando nisso. Me sentei, nu, olhando para as estrelas do céu e chorei como nunca havia chorado antes. Lavei meu corpo com lagrimas salgadas, e ali renasci por completo. 

Quando chegou o dia, um barco atracou. Um senhor de idade, usando um macacão amarelo me cumprimentou e ajudou a subir no barco. Como descobri que estava na Nova Zelândia pela internet, aproveitei o tempo para aprender bem a língua inglesa. Fui levado até um lugar onde conheci meus sequestradores. O homem no barco também era um deles. Me receberam com sorrisos e nos abraçamos. Esses caras me ajudaram a salvar a mim mesmo.  Descobri que amava eles também.

Eles me contaram sua história, mas não posso compartilhá-las com vocês, desculpem. Mas apesar de ser um negocio meio extremo, o método deles realmente funcionou. 

Depois de viagens longas, voltei para o Brasil. Eu enxergava as coisas de uma forma diferente, com mais luz. Quando cheguei em casa, minha mãe chorou. Ela não sabia que eu não era mais aquele inútil, mas mesmo assim chorou, me abraçou e beijou, e eu fiquei feliz em vê-la. Antes, vê-la me entediava. Meu pai veio correndo. Quando me viu, me deu um tapa no rosto e depois me abraçou com força. Gargalhamos.  

Contei a eles minha historia superficialmente. E pude perceber como me olhavam de forma diferente. Com brilho, um certo orgulho. Eu não conseguiria mais morar com eles, mas não por querer me livrar, não, mas por que eu me sinto bem comigo mesmo. 

Parece difícil acreditar que eu vivi esse milagre, eu sei, mas a vida é cheia de milagres, eles existem a todo instante, e você pode vivenciar vários no período de um único dia. Se alguém segura sua mão e diz do fundo do coração que te ama, isso é um milagre. No mundo louco e egoísta que vivemos, o amor abre passagem, as vezes, na base da porrada.  

E as vezes o que a gente precisa é só de um sequestro pra dentro de nós mesmos, pra que a gente possa se conectar, literalmente, com Deus e o mundo.

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